30.3.10

a mais linda do mundo

foto: Fátima Condeço (www.olhares.com)

a menina mais linda do Mundo,
chegou singela
parou à minha janela
e sorriu
não disse nada
trouxe uma rosa encarnada
arcaicamente embrulhada
no poema que escrevo
agora
deu-ma, deu-me, deu-se
depois, partiu
foi embora
dizendo que chegara a hora
de ser mulher
me deixar menino
com um destino
que tento perceber sozinho
e escolher
destemido, sem escolta
esperando poder ter
a mulher mais linda do Mundo
um dia, para mim
de volta

29.3.10

gostava de saber dizer

gostava de saber dizer, amo-te
mas não sei com quem aprender
acho que quem diz saber dizer
não sabe o que diz, inventa
diz amo-te simplesmente por dizer
ouviu as palavras em filme de terceira
como se tudo o que lá dizem
(incluindo, amo-te)
fosse verdade, não fosse aprendido em papéis
escritos por guionistas, ao amor infiéis
como se fosse dito sem ler, sem imitar
sem ponto de teatro, sem soletrar
com uma lágrima em alegria a confirmar

se fosse um amo-te, dito com um olhar
se fosse um amo-te, dito com um tocar
se fosse um amo-te, dito com um beijar
eu acreditava
mesmo não havendo ninguém para abraçar.
mas tão distante, eu não te consigo olhar
porque sozinho eu não te consigo tocar
e o destino levou-me os beijos
deixou-me o corpo sem desejos
e liquidou de vez o verbo amar

gostava tanto, mesmo tanto
de saber dizer
amo-te


27.3.10

boca cheia de credos


passei ontem por teus olhos
e quis guardá-los p’ra mim
tê-los quando já sem luz
possam iluminar os meus medos
com um brilho que seduz
fazendo contar segredos
encerrados em azedos
de boca cheia de credos
rezados em contraluz

são velas que se derretem
os teus olhos, quando choram
gotas de cera que enrolam
os receios que me assolam
quando à noite sinto frio

passando pelos teus olhos
pousados no teu sorriso
quis guardá-los para mim
fitá-los entre os escolhos
dum oceano de lava
que ontem à noite passava
e me engolia a memória
sem escrúpulo, sem aviso

21.3.10

o sonho da cegonha




eu? não sei se continuo em inverno
se me fundo no degelo
que em água vai correndo
para as sarjetas da vida

eu? não sei se vale a pena
encontrar nova estacão
que por descobrir calendário
aberto e de feição
vai entrando devagar
com temperatura fingida
pintando com novas cores
a rua cinzenta e confusa
que se estende, adormecida

eu? sonhei com a cegonha
que enfeitou o meu ser
e convenceu-me, a dormir
que teria de partir
de um inverno comprido
que me faz bicho despido
sem vontade de sorrir

eu? por estações enganado
e por suores alagado
em calores de imaginação
acordei destemperado
vi que o pássaro encantado
foi mais uma simples visão

cegonha branca

foto: Manuel Revés (www.olhares.com)

segui uma cegonha branca
deixando minha alma sonhar
vinda de terra distante
numa procura constante
numa ânsia de pousar

segui com os olhos perdidos
num céu que me parecia mar
as rotas do teu caminho
as minhas escolhas, sozinho
as belezas do teu voar

com minhas asas fugidas
sem penas para contar
em terras já ressequidas
deixei tristezas caídas
que tu vens, cegonha, alegrar

15.3.10

pedaço de ti

foto: Marcos Oliveira (www.olhares.com)


pedaço de ti
que encontro quando chove
e que em arco-íris
em mim se morre
com prazer
apagando feliz
o escuro do meu ser.
assim, para te ter
choro chuva cor de giz
branca, sem significado
e espero fascinado
pelo brilho que acontece.
colho a cor que me apetece
pinto a alma a preceito
depois, quando entardece
beijo-te de luz, com meu jeito
e as sete cores adormeço
descansadas, no teu peito

13.3.10

passo a passo

foto: Raquel Madureira (www.olhares.com)


passo por ti
com passo largo
traço a compasso
circunferência
com transparência
que quase afasto
gosto que tenho
de passo a passo
seguir o traço
e embaraço
perder espaço
perto de ti

mas com um laço
dou-te uma flor
que cheira à cor
e mostra a dor
deste meu passo
desembaraço
de andador
atrás de ti

11.3.10

enxurrada


adoro quando me olhas
com palavras adoçadas
leio nos teus olhos textos
antigos e segredados
dos futuros apagados
por águas correntes, salgadas
levando em enxurradas
que desaguam no (a)mar
desejos que são viajantes
desejos de me falar

adoro quando sorris
com os dedos em enredos
roçando as gargalhadas
desenhando momices dançadas
em palavras disfarçadas
mudas, sem letras, cansadas
engolindo os meus medos

a tua pele me cativa
com lampejos de arrepio
enchendo este vazio
onde imensa comitiva
de fantasmas em degredo
matam-se quase em segredo
e deixam viver a vida

8.3.10

parto de partida


parto dum cais
sem a partida
bem definida
por marinheiro
sou o primeiro
que sobranceiro
assisto ao parto
da criatura
(contra-natura)
e mal parida

no temporal
sem um sinal
que avisasse
esta partida
chegam chacais
devoram vida
que sem saída
geme doída
perde a partida
morre no cais

6.3.10


lá, onde os sonhos moram
vamo-nos afundar devagar
vamos perder os sentidos
engolindo todo o mar
que em marés de paixão
vai cumprindo a função
de nos embalar a salgar

as entranhas, as vontades, os desejos
em lábios cheios de beijos
mas sem força pr’a sorrir
nem que seja por sentir
a aragem dum amor
que nos deixa seu odor
perfumado, ao fugir

lá, onde os sonhos moram
vamos contar as estrelas
de céus com poucas janelas
por onde podemos olhar
com olhos a marejar
as utopias da vida, que nos parecem tão belas.
lá, caem palavras de água
que afogam a minha mágoa
deixando na minha pele
gotículas do teu sabor
estas, percorrem as linhas
que se desenham sozinhas
pelas passagens da dor

4.3.10

partidas e chegadas


as angústias das partidas
entrelaçam-se em anseios de chegadas
baralham-se em horas marcadas
ou desmarcadas
por atrasos repentinos
perdem noção, ganham miragens.
as origens não sabem se são destinos
imploram aos seres divinos
e deixam morrer as viagens

à espera, tu, em cada ponta da linha
ponte aérea aguardada
de voos em fios de lã
esperando um amanhã
de partida sem chegada

à espera, tu, abraçada
a uma chegada agendada
tricotada em solidão
tu sem tempo, estás parada
numa vontade de nada
perdida na madrugada
com tempo para a ilusão