29.6.10

lençol de linho



estendo o lençol onde me deito sozinho
conto os sonhos que não tive e os dedos que retive
em sudação
inundando a minha pele sedenta de um carinho
conto os sorrisos deitados a meu lado
guiando em contramão
e os perfumes que um dia falaram comigo
em evaporação
estendo o meu corpo em solidão
como castigo
como barco vazio onde o capitão
sentado no nó da vida
não tem qualquer saída
nem cais de amarração
fixo-me com olhos de alma
espreito-me com pele arrepiada
de me ver assim, feito nada
mesquinho
em lençol que presumo ser de linho
porque o branco me parece daqui
diluído
parido
detido
no uso dos dias que não passam
eu, pareço-me talvez diferente
desistente
descrente
dependente
de um olhar que me toque, de uma mão
que me agarre nesta noite que existe sem razão

27.6.10

destino - Porto

foto: Nijmegen (Holanda)


encontro sinais de Porto na cidade
envolvidos em palavras desenhadas
deixando pelo olhar uma saudade
de ter estreitas ruas desarrumadas
nas ruas que aqui percorro ordenadas

em cansaços e calores alucinados
vejo os Rebelos do Douro apinhados
de nadas muito cheios de vontades
navegam nas paredes que observo
pintadas como rio que se corre
nas veias dum alguém que foi seu servo

a Foz é já ali, depois da esquina
da rua Escura que já se ilumina
com passos imaginados de pessoas.
o sonho vai partir do aeroporto
em voo de avião sobrelotado
na mão um bilhete amarrotado
onde se pode ler: destino - Porto

21.6.10

poema roubado nos teus lábios


tens algo que fascina os sentidos
e me deixa levemente adormecido
nos sonhos demorados que me trazes
tens algo, que povoa o meu destino
e que hoje eu desenho por instinto
no papel reciclado por teus dedos

deixo os versos riscados em cegueira
envolver as marcas que me sopras
e os sorrisos semeados com arado
agarrados por meus olhos à distância

deixo as palavras roubadas
de surpresa à saída dos teus lábios
tingirem o ar que eu respiro
deixo a alma abraçar a liberdade
voando rasante e em saudade
na brisa de ternura que lhe chega

inspiro devagar tua presença
que bebo em tragos prolongados
deixando que me encontres nos pedaços
das palavras que por ti agora escrevo

20.6.10

reflexo

foto: Marília Henriques (www.olhares.com)


tenho cada cm da tua pele
desenhado em cada cm do meu corpo
tenho a tua boca
plantada na memória
e o teu sorriso pintado
na história que escrevo solitário
tenho cheiros semeados
tenho os teus dedos marcados
em poemas espalhados pelo tempo que nos lambe
tenho palavras tuas nas paredes
ecos esmagados escorridos
dos gemidos que impedes
e dos gritos que se morrem esvaídos

tenho no espelho a tua imagem
gravada em reflexo
e os teus olhos acesos
no espaço complexo
onde dançam indefesos
os meus pensamentos não coesos
ao som de uma música sem nexo

17.6.10

labirinto


voltei ao labirinto para me perder
quem sabe para viver
para permanecer em estado louco
ou em estado liquido (pouco)
por cuidadoso descongelamento
do pensamento
entorno-o em cinzento
em gotas de desinteligência
sobre as sebes que limitam a consciência
labirinto-me assim em inocência
desmembrado
desregulado
no tempo, vontade e espaço
reduzido a corredores infinitos
em círculos, semicírculos, circunscritos
onde caminho em passo acelerado.
quero e não quero encontrar o lado
onde possa ser exorcizado
onde possa ser excomungado
onde possa ser iluminado
e passar para o mundo dos espíritos

12.6.10

3 - três

foto: Emanuel Amaral (www.olhares.com)


podia escrever-te 3 versos
com palavras escolhidas
imaginar 3 histórias
em 3 linhas bem corridas
podia colher 3 flores
com 3 cores
por mim um dia perdidas
ou procurar 3 tesouros
em ilhas desconhecidas
navegar só por 3 mares
com ondas muito batidas
que me levem em 3 tempos
a esquecer as feridas
podia pedir-te 3 sonhos
antes de adormecer
que me levassem p’ra longe
que me fizessem viver
podia dar-te 3 beijos
tantos quantos os desejos
que se apressam a crescer
podia oferecer-te os 3 S’s
com que tu me tens cativo
silêncio
saudade
sorriso
e depois sem um aviso
deixar-me endoidecer
pedir-te para morrer

8.6.10

silêncios

gravura de Florencia Coschignano (http://cronopiaverde.blogspot.com/)

os silêncios ocuparam-me a casa
roubaram-me espaços e engoliram os ruídos
que me faziam companhia
os silêncios pararam o relógio da cozinha
que com enorme bonomia
me ritmava com segundos sorridentes
o bater do coração
inconvenientes
os silêncios proibiram as portas de ranger
os silêncios interditaram o ruído da água a correr
e deixaram pelo chão
pegadas de solidão
que eu corro a esquecer
em vão
os silêncios são mais de um milhão

os silêncios selaram as janelas
transformando em celas
todos os lugares onde sorria
os silêncios mataram o cantar da poesia
que me acordava docemente
quando o sonho passava da noite para o dia

os silêncios esbofeteiam-me a face
molestam-me o corpo
deixam na alma uma ausência
que me enfraquece
que me enlouquece
que me envelhece
e me prepara com violência
para o fim de uma existência

3.6.10

trouxeste o corpo

fotos: Marilise Oliveira (www.olhares.com)


trouxeste o corpo
e eu os beijos, em enredos
imensos
densos
suspensos
soltos
em desenvoltos
deslizamentos de dedos

trouxeste o corpo
e descobri teus segredos
caminhei nele em degredos
cumpri penas
pequenas
amenas
em novenas
torturado por serenas
vontades, ansiedades e medos

trouxeste o corpo
e eu te quis por inteiro
sozinha
rainha
adivinha
da tristeza minha
que me definha
e me deixa num desistir derradeiro

trouxeste o corpo
que perdidamente me acalma
eu dei-te beijos
proibidos
destemidos
escondidos
coloridos
perdidos
no sorriso que estendeste
na praia da minha alma

2.6.10

cheguei (ou poema para uma ausência...)


cheguei
sou viajante do tempo
vim à boleia do vento
pousei, já estou aqui
o relógio estava lento
o céu um pouco cinzento
mas pousei, perto de ti

vim depressa, a voar
nas asas que tu me deste
grandes, leves, transparentes
muito ternas, a brilhar
foram abraço celeste
que aos meus braços trouxeste
numa noite sem luar

sabes, vim agora pr'a ficar
enquanto o sonho durar
e o tempo não fugir
trouxe comigo o gostar
de olhar no teu olhar
corrermos juntos, brincar
e depois te ver sorrir

cheguei
trouxe gomas coloridas
trouxe palavras corridas
que encontrei para dizer
trouxe beijos, trouxe afagos
trouxe a saudade singela
que espreita aí à janela
tentando também te ver

corre, corre, para ela
corre diz-lhe que se vá
diz-lhe que o tempo dela
acabou na primavera
porque agora estou por cá