28.10.10

anda beber-me

anda beber-me em tragos

propositadamente pequenos

a água que tenho na boca

são os desejos serenos

deixados pelas palavras

que às vezes tu me dizes

que às vezes tu me escreves

em post-it(s) obscenos


engole-me a alma e o corpo

digere bem devagar

tudo o que tenho em segredo

tudo o que guardo, a medo

anda, vem docemente roubar


leva-me o cheiro da pele

que pões a escorrer no teu corpo

leva-me as marcas dos dedos

as carícias digitais

prolongadas em preguiças

pelos amores matinais


anda beber-me, embebeda-te

com as fomes que eu tenho

mata a sede que tu trazes

sorve as saudades que são

milhares de gotas salgadas

lágrimas de mar revoltadas

que afundam o coração

21.10.10

deixo-te

deixo-te entrar só por hoje

deixo que me surpreendas

que me roubes, que me tenhas

que me explores as entranhas

deixo hoje que me prendas


deixo-te lamber a alma

estremecida contigo

misto de medo e de frio

que penetra em castigo

por frincha do pensamento


deixo que me incomodes

que ocupes o meu sono

que me acordes quando durmo

que me agúes em suores

quando iludes o Outono


deixo espaço para ti

deixo lugar só por hoje

quero que uses torturas

quero que faças sevícias

enche-me com tuas malícias

mostra tua crueldade


saudade, vou te matar

esmago-te com um abraço

transbordando encantamento

hoje deixo-te entrar

só para te poder dar

uma morte por um tempo

espelhos (para Faraj)


os espelhos têm dentro
os meus fantasmas
acordados, passeiam-se no vazio do reflexo
quando a minha cara não está
por vezes, os fantasmas saltam de face
trocam de lado, passam para cá
e entram no meu corpo
mordiscam-me a carne por dentro
aceleram o sangue morto
que estoura em golfadas, o coração
os espelhos riem-se livres
com brilhos e felizes
olhando para o meu corpo, já no chão
estendido abruptamente
em lençol de solidão
miram-se nele e vingam-se
arranjam os cabelos com dedos imaginados
sorrindo como gigolôs passados
e ares de falsos apaixonados
depois, convencidos e vaidosos
deitam-se nus e frios
com brutidão
deitam-se sujos e apagados
deitam-se ensonados
sem qualquer reflexão

15.10.10

resgate

resgato um a um
os meus sentimentos perdidos
soterrados no meu ser
desesperados e poucos
foram definhando em magrezas
de esperanças e vontades

em operação delicada
trago-os à superfície da pele
trago-os à boca da minha boca
trago-os à luz que não existe
nas ribaltas desta vida
trago-os, às palmas das minhas mãos
trago-os em absolvição de pecados
duma luta fratricida

em operação delicada
planeada
demorada
arriscada
com a morte sempre à espreita
foram chegando confusos
cegos pela escuridão da alma
esgotados da difícil caminhada

depois, libertos, fugiram
abraçados entre si
os meus sentimentos fugidos
escondem-se desabridos
mas andam algures por aí


13.10.10

tomar, variações de conjugação

tomo café numa praia
desenhada num papel
porque mar, aqui não há
fiz do açúcar areia
e da colher, uma pá

tomo um chá em pensamento
imagino, de canela
enquanto o teu sol se põe
no parapeito da vida
perto da minha janela

tomo um banho de saudades
liquefeitas nos meus olhos
faço espuma com sorrisos
que se escorrem imprecisos
pela pele em sentinela

tomo duche dos aromas
que engendro serem teus
fico respirando cheiros
tornando-os verdadeiros
fazendo-os perfumes meus

adormeço com cansaços
dum dia de embaraços
e sonho, sonho contigo
tomando-te devagarinho
como onda, nos meus braços

10.10.10

jantar

ao jantar
serviste-me com a sopa
sorrisos prometedores
ares de mulher convencida
com laivos de atrevida
colheradas de conversa
desinteressante, banal
vinho branco disfarçado
em goles de gargalhadas
as tuas mãos alheadas
numa toalha normal

depois, um prato escolhido
partilhado por lembranças
que foi sendo arrefecido
pelas palavras sem sal
ditas, dispersas, sem tacto
estilhaçaram-se os copos
empenaram-se os talheres
que em retirada estratégica
deixaram-se cair ao chão
como migalhas de pão
ou restos de coração
partido em mil pedaços

a sobremesa já fria
(tarte quente de maça)
veio tarde, sem magia
como a tua invernia
que puseste com mestria
naquela mesa fatal
onde o jantar foi servido
num restaurante esquecido
numa toalha normal

não houve café no fim
sobraram restos de mim
em gorjeta mal contada

7.10.10

desassossego de Outono


observo a chegada do Outono
perdido entre as ruas da cidade
parece visitante forasteiro
que encontra estranhamente encurraladas
restos de flores azuis, num canteiro
morrendo devagar arrepiadas
e um frio implacável e certeiro
que lambe as pessoas abrigadas
nas paragens de vidas rejeitadas

as paredes ainda quentes arrefecem
dos beijos escorridos do Verão
e as árvores escondidas já se despem
preparando orgias imaginadas
próprias de principio de estacão

suas roupas amarelas e usadas
deslizam em vento batido de norte
como soprado, ritmado e forte
por penas que moram no coração

eu as observo, enfeitiçado
mergulhando meu olhar pela janela
do café onde em desassossego
leio Pessoa e saboreio a mensagem
bebida num chá quente de canela

2.10.10

(des)esperando por ti


ao fim-de-semana é assim
(des)espero por ti
ao saber que a demora é eterna
e o tempo não quer parar
pr’a teres tempo de chegar
(des)esperando, aos pedaços
procuro os cantos da casa
onde me fico parado
velando as horas mortas
em enterros repetidos
ao fim-de-semana é assim
as mãos vasculham memórias
coladas nos objectos
que se pousam em prateleiras de saudade
verdade
(des)espero mesmo por ti
hoje mesmo, eu senti
o resto do teu perfume
na gaveta que me abriste
do lado esquerdo do peito
sem jeito
desfeito
(des)espero com o vazio
fico morrendo de frio
que a noite sempre me traz