28.11.10

o cortejo da morte


estamos esperando a morte
com toda a sua alongada corte
de anjos e diabos em cortejo
estandartes ao vento, em primeiro
com cores tingidas por nevoeiro
e silêncios em marchas militares

a cidade dos vivos veio ver
o desfile de artefactos de morrer
figuras rastejando, agoniantes
risos de hienas e encher
o ar com sons acutilantes

abutres sobrevoam as cabeças
presas a corpos assustados
por um fio de medo a escorrer
olhos de terror saem das órbitas
e rolam perdidos por encantos
das virgens que vieram se perder

a morte desfila empoleirada
no andor da vontade de viver
sorri e acena à multidão
que se agita como mar encapelado
que reza desesperadamente o terço
que roga piedosamente mas em vão

a morte chega e abençoa a multidão

25.11.10

absurdos no jardim

plantei absurdos no jardim
para dizeres que sou louco
para me internares mentalmente
em hospício de sentidos
com paredes transparentes
e tectos feitos de céu

no quarto onde me deito
amarrado ao pensamento
faço comboios de estrelas
que circulam devagar
em carris quase inventados.
passagens de nível com guarda
sorriem sempre p'ra mim
acenando utopias
em bandeirolas vermelhas
como absurdos que crescem
pela noite, no jardim

os comboios derreados
seguem carregados pr'a lua
onde deixam para ti
(porque dizes que sou louco)
os absurdos colhidos
mentalmente, em silêncio
no início do poema
quando, não sei porquê
falei tão ternamente
de um hipotético jardim

21.11.10

desenho-te

desenho-te os contornos
com um lápis inventado
deixo pó de carvão a morenar-te a pele
como se o verão chegasse antes do tempo
deixo, os teus olhos escuros bem abertos
e um jeito de menina endiabrada, espalhado pelo corpo.
fixo brincos, como estrelas, nas orelhas
e anéis de saturno, ficam a girar nos teus dedos
num movimento que me entontece a vontade.
os lábios, negros, num luto que me parece eterno
querem beijos, sorriem com pingos de tinta preta
que te borratam a pele e antecipam a noite
a abraçar-te com cuidado.
desenho-te os contornos
em linhas de cor espessa que te envolvem em novelos
despidos de preconceitos
tenho assim, o esboço do teu corpo
guardado na moldura dos meus olhos
que, quando adormecido, apresento
na exposição dos meus sonhos


15.11.10

de repente

e de repente o ar tornou-se frio
gelando cada molécula de oxigénio que o povoa
e de repente engulo grãos de gelo
que deslizam ao som do respirar
cravando-se como alfinetes frios, na alma que adormece
assim, e de repente, as conversas ficam orfãs, sem destinatário
esbarram nas paredes que me cercam
escoam na chuva que se perde
escorrida na janela do meu quarto
sabes, o ar tornou-se frio
e tomou conta do meu corpo
como se fosse a morte a chegar
como se fosse um barco a partir
deixando na maré, a espuma do teu cheiro
e de repente o ar tornou-se frio
fechando meus olhos fartos de sonhar


11.11.10

o tempo




o tempo esfomeado
devora-nos
o tempo desencontrado
consome-nos
o tempo atrasado
distrai-nos
o tempo disfarçado
enerva-nos
o tempo atormentado
envelhece-nos
o tempo esgotado, cansa-nos
e nós, sem tempo pr'o tempo
partimos
desistimos
cegamos
deixamos o tempo confuso
deixamos o tempo parado
morremo-nos como os segundos
que morrem nos braços do tempo