25.1.12

os cansaços dos sonhos



os cansaços dos sonhos
invadem-me a vontade de dormir
abrem-me os olhos com dedos férreos
e deixam-me o corpo com dores pensadas
prensadas
pelos movimentos retidos e castrados
na cama vazia do sentir
negra paralisia
que a noite deixa que se pareça com a morte

caminho descalço
para que o frio acorde a letargia pacificamente instalada
espero que, por sublimação
o cérebro arrefeça
e ajudo-o, bebendo água gelada
retirada instintivamente do frigorifico branco
adormecido na alvura da neve usurpadora das cores
que no verão se avistam da janela

sento-me, revendo a vida toda
com uma ordem escrupulosamente definida
primeiro ontem, depois anteontem
quando partiste
sábado, sexta, quinta, quarta…
todos os detalhes, todos os momentos
acumulados nas gavetas que vou abrindo dentro da memória
terça, segunda, outra vez domingo
continuo numa procura incessantemente sôfrega
e paro no jardim
do dia em que te conheci

24.1.12

os três diabos




os três diabos sucedem-se  
em ciclos viciosos, viciados
imutáveis, intangíveis, imputáveis
engolindo os dias que contamos
gargalhando na alma
e enrugando a pele
que dificilmente resiste
aos ventos vorazes deste mundo
os três diabos trocam-nos os passos
apagam os rastos
vomitando destroços de planos
sobre os sonhos
que sonhamos acordados
os três diabos não se apanham
com os dedos
não se cheiram
não se olham
não se matam
sentem-se, simplesmente, sentem-se…
e vivem nos ponteiros do relógio

21.1.12

NOVO LIVRO: Voar / Skristi / Fly



Livro de poesia em 3 línguas (Português / Lituano / Inglês)
com base na análise poética das belíssimas esculturas de
brilhantemente fotografadas por
João Frazão


Para adquirir o livro, poderão contactar-me diretamente ou através da 
(http://orfeu.blogs.sapo.pt/)



20.1.12

ausência


espero todos os dias
religiosamente pela noite
onde os meus medos se diluem no escuro do céu
e os desejos se estrelecem
em pequenos astros
que enchem o firmamento da minha alma

descubro-me para ti
porque não estás
e religiosamente
espero pelas tuas palavras
que me abraçam com sílabas meigas
construindo no meu corpo
arrepios de amor

espero religiosamente pelo teu sorriso
que apareça, que permaneça
por aqui
e pouse propositadamente nos meus lábios
fazendo-me cócegas e sorrir

espero que o teu corpo se encha
das ausências
espero que os teus sonhos
não sejam coincidências
espero, espero, espero
e assim, envolvido pela noite, minha companheira
discuto com Deus, o tempo
que demoras a chegar

(versão polaca)

17.1.12

números em catadupa



quando o silêncio invade
os domínios dos sentidos
o tempo para e se lava
nos neurónios esquecidos
esgotados pela vida

e os números em catadupa
caem do céu da boca
fazendo murmúrios na língua
que canta em lengalenga
as matemáticas idas
das contas do meu passado:
cinco amores
e muitas dores
sete vidas
poucos gatos
muitos ratos
nos retratos
roendo as sulfamidas
para almas possuídas

dois pudores
envergonhados
da lista dos dez melhores
duma revista estrangeira
três viagens
e bagagens
cheias de coisas menores
arrumadas à maneira
no comboio dos horrores
trinta e três
dizem doutores
nomeados desertores
das medicinas modernas
e um homem das cavernas
que quando o silêncio invade
os domínios dos sentidos
risca carneiros nas pedras
para não adormecer
em traços que são proibidos
e me vão endoidecer

NOTA: Desafio lançado pelo Clube de Matemática ao qual respondi com um gosto muito especial atendendo à minha formação mais virada para as ciências do que para as letras. Neste exercício mensal, pretendo, de alguma forma, ''casar'' a Matemática com a Poesia... vamos ver no que dá...



goldfish




era uma vez um velho goldfish
que sobrevivia num aquário de paredes verdes
com água verde
e pedrinhas escorregadias verdes, no fundo
lá no fundo
um goldfish
pouco gold
pouco fish
com memória rouca
e uma vontade louca
de se lembrar como se nadava
em águas cristalinas
como o amor
de se lembrar como se olhava
com olhos grandes
sem ter dor
de poder chorar lágrimas sentidas
que não se perdessem
naquelas águas obscuras
da vida
toda contida
dentro de um pequeno aquário

era um velho goldfish, sem vez
completamente perdido
num universo verde
desconhecido
quem sabe, talvez
pintado na tela utópica de um poeta…

(versão em polaco)

9.1.12

o sopro do silêncio



o sopro do silêncio apaga
vagarosamente , as lembranças do teu olhar
brisa suave que se cheira
que se sente como afago de dedos
que deixo descuidadamente entrar
para me roubar
a paz
e me matar
a vontade de dormir

o sopro do silêncio veste
vagarosamente, os meus olhos de sal
esfria-me o sangue
e dói-me o gelo que aos poucos
me rasga as veias
dilacerando sem dó o coração

o sopro do silêncio tem um cheiro
de flores desmaiadas
tem as cores das primaveras adiadas
que se perdem estupidamente por aqui
quando, desesperadas
procuram vagarosamente por ti

8.1.12

noites assim



e passávamos noites assim
roubando desejos um ao outro
ameaçando toques de pele
e com sorrisos aterrados em lençóis
engelhados pelas horas a passar
de olhos fechados
as palavras desenvergonhavam-se
nas nossas línguas
como se fossemos nós
como se fosse possível fazer amor contigo
só tendo a tua mão
ou, de vez em quando
os teus beijos contados
pelos segundos que tens de cor na memória
como se fosse possível roubar-te a alma
e levar-te para o céu
lá, onde as nuvens
nos deixam abraçar
e chover
sempre que quisermos