30.1.11

Perdido



Passo perdido pelas pessoas que povoam os sentidos da vida
Passo encolhido pelo subconsciente que me esmaga os sonhos
Coloridos
Plantados na memória
Das noites que um dia foram dias

Procuro luz
Ou talvez uma estrela esquecida
Que na ausência de um sopro
Na falta de alguém a respirar
Sobrevive
E brilha
E se consome cintilando
No buraco negro aberto pelo parir da alma
Que engravida por vontade de se apagar

Procuro o meu olhar derretido no horizonte
Ainda quente
Procuro-o na praia que não existe
Passo perdido pelo pôr-do-sol
E deixo a chorar na capela
A imortalidade
Orfã de mim

Novelos de vocábulos


E os olhos com poeira de palavras
Amontoada no tempo
Deixaram-se lavar em lágrimas

Foram a nascente do rio
Que corria nos meus dedos
Quando fiapos de sol
Se emaranharam no livro, inacabado
Adormecido na cama

Novelos de vocábulos, a brilhar
Rolaram devagar nos lençóis queimados
Pela febre que deixei sair de mim

Depois, os olhos secaram
Fecharam com a luz do dia
E perderam o gato preto, pequeno
Que brincava com um poema
Em novelo
Que eu escrevi para ti

Não me apetece


Agora não me apetece que sejas a borboleta
Pousada no ramo do meu braço
Esperando o sol chegar

Não me apetece que sejas chocolate
Derretido nos meus dedos
Antes do eclipse de amor
Provocado por corpos estranhos
Que atiraste para o céu
Onde as estrelas caíram em desuso

Não me apetece que sejas musa minha
Ponho-te, com tudo, a dançar nua
Na capa do meu livro
E espero uma montra cheia de olhos
A escorrer languidamente na vidraça

Agora mato-te por um tempo
Deixo-te adormecida no hipotálamo
Perco vontades e a temperatura
Perco a fome, perco a sede
Agora, por um tempo
Não me apetece gostar de ti

20.1.11

caíram hoje flores do céu




caíram hoje flores do céu
molhando a cidade com pétalas brancas
que se desfizeram no calor dos passos
dos homens
esquecidos do que era a primavera

caíram hoje flores do céu
e os perfumes, que eram muitos
inundaram corpos de mulheres suadas
cansadas
esquecidas do amor
que foram obrigadas a perder

caíram hoje flores do céu
como se fossem os invernos a morrer
aos poucos, esquecidos de viver
esquecidos que ainda ontem
havia dias a amanhecer

hoje como se fossem fiapos do tear
como se fossem cabelos meus a branquear
caíram flores do céu
que adoçaram ruas, a polvilhar

eu, na minha janela
deixando o vidro a embaciar
entreguei-lhes turvo, o meu olhar

18.1.11

vou-me embora




vou-me embora
levo os sorrisos comigo
e os bolsos vão vazios
dos sonhos de primavera
que deixei a hibernar.
vou-me embora, deixo-te as mãos
com os dedos esquecidos
frios e recolhidos
nos bolsos da solidão.
na partida (pois vou-me embora)
vejo que a vida deserta
se despede em sarcasno
acenando à janela
o tempo branco cansado
que eu não soube pintar.
vou-me embora, já não espero
liberto os olhos de choros
que se fazem tanto mar
deixo palavras vazias
leves, ocas, sem sentido
capazes de navegar

13.1.11

desconstrução da vida




desconstruo a vida
peça por peça
fragmentando cada tempo que perdi
rasgando os desejos que senti
castrando as vontades que encontrei na caixa do correio
enviadas há tanto tempo por ti

desconstruo com sistematização elaborada
começando pelo telhado cor de vidro
por onde via as estrelas que pensava serem minhas
apanhava-as à noitinha
acabadas de acordar
apagava-as com os dedos molhados
cuspidos para não ficarem a brilhar

as paredes desmontadas
pelas sombras dos meus olhos
caem embaciadas
levantam nuvem de poeira
que seca as saudades
escorridas no meu peito

desconstruo, recuando na idade
lembrando quão difícil é a tabuada
cantada ao inverso, na primária
quão difícil é mergulhar numa praia
com a maré agitada

peça por peça
desencaixo
corto amarras, extirpo elos, desato nós
uso alicate, tesoura, x-ato
desconstruo a vida
com interior desacato
ofereço-a assim desmontada ao passado



6.1.11

trilogia de uma viagem - ladrão de abraços




o aeroporto é catálogo de abraços
que atentamente revejo nas partidas
de cada viagem minha

fico por lá, esperando aviões
identificando abraços, todos
etiquetando carinhos e amores
que em sobressalto se aterram
nas multidões ansiosas por os ter

eu, por lá fico, horas e horas e horas
perseguindo gente com o olhar
estudando vítimas ao pormenor
procurando aquele abraço maior
que tanto quero roubar

trilogia de uma viagem - eternamente sentado


eternamente sentado
conto as horas que escorrem em pingas demoradas
do relógio digital do aeroporto, em Paris
os segundos, libertados
caminham nos rufares dos tacões
de mulheres lindas, todas iguais, que
falando ao telemóvel
se passeiam em 60 passos
estendidos na distância enxergada por meus olhos
daqui onde me encontro, eternamente sentado

eternamente sentado, do outro lado da linha
imagino-me
eu
ouvindo em francês
as palavras que queria tanto que dissesses

trilogia de uma viagem - pessoas lindas do passado



as pessoas lindas do passado diluíram-se na chuva
que escorria no pára-brisas do meu carro
cumprimentaram-me com um ar feliz
deixaram-se deslizar em pingas de sorrisos
que me inundaram a alma
e submergiram a minha vontade de parar
no sinal vermelho duma rua estreita que
estava vazia de sentidos

apaguei os olhos com estilhaços de tempo
abandonando-me em vermelhos de semáforo e sangue
num passeio arrefecido por destroços de vida

depois, as pessoas lindas do passado, diluídas pela chuva
carregaram nos seus braços
o meu corpo desmanchado por tristezas
levaram-no com ar feliz
e disseram-me que seria uma delas
para sempre