29.5.12

borboletas da noite


as borboletas da noite
têm olhos enormes e asas com desenhos que assustam
quando se libertam, e em nuvens de pó
se colam nos vidros das janelas, construindo histórias de pavor
as noites, que são quentes, estão cheias de borboletas
com olhos de pessoas mortas e asas de aviões fantasma
perdidos pela torre de controlo
ouço-as a conversar na janela
e imagino que não são da noite
(as borboletas)
mas das flores que de manhã tu me trazes
antes dos aviões se despenharem nos sentidos
e dos olhos enormes rolarem sobre mim
cegando as vontades que ainda tenho

25.5.12

uma questão de coração


decididamente
deixou de ser uma questão de matemática
inubitavelmente
desenquadrou-se de qualquer teoria
passou ao lado de leis e operações
perdeu-se em caminhos pejados de incógnitas
passeou-se por equações de grau elevado
e soluções impossíveis
à noite, principalmente à noite
pesava quilos e quilos de palavras
por dizer
despertava filósofos e matemáticos
que viviam nas brumas
procurando identificar a razão
da sua existência
foi perseguida pela inquisição
não tendo no entanto sido encontrada
qualquer religiosa motivação
à noite, principalmente à noite
chorava
contrariando todos os princípios matemáticos
que de lágrimas não percebiam nada
pensou-se poder ser um elemento geométrico
um polígono com muitos lados
ângulos apertados, causando sofrimento e dor
recusado!
demasiado evidente, devido à intensidade
que variava com a distância
e com a ausência
de algo não identificado
conclusivamente
deixou de ser uma questão de matemática
não!
aquela saudade
era simplesmente uma questão de coração


(http://www.clube.spm.pt/arquivo/1206)

23.5.12

silêncios


encerro os lábios para te falar com os silêncios que recolho
das palavras dos romances de amor
as minhas, as que reverberam na minha garganta seca
e que às vezes tento alinhar em sms’s que me parecem belos
morrem na escuridão da noite, porque já dormes
ou porque os romances são numa língua esquisita que não entendes
falo esta noite com os silêncios que tu gostas
e espero um amanhã ruidoso de sorrisos

21.5.12

um livro novo

um livro novo abre-se religiosamente a meio
pressionam-se as páginas assim abertas
até o primeiro choro das palavras
se libertar no ar
depois
abrem-se religiosamente a meio
cada uma das duas partes, anteriormente abertas
e as palavras, com sorrisos, conhecem os dedos que
página depois de página
as  irão afagar

um livro novo, começa-se assim
religiosamente a amar

19.5.12

os meus pássaros negros



e o escuro era tão escuro
que os meus pássaros negros apareceram sem se ver
e só os grasnares violentos entraram por dentro de mim
pintando de negro todo o sangue que me chegava ao coração
e o escuro era tão escuro
que os meus pássaros negros chegaram sem avisar
e o vento semeado por suas asas negras
me ofereceram um vento podre, um ar viciado para respirar
e o escuro era tão escuro
que os meus pássaros negros não precisavam de olhos para enxergar
e os meus, também escuros
cegavam aos poucos, feridos por agulhas sem linhas para chorar
e o escuro era tão escuro, mas tão tão escuro
que os meus pássaros negros
pousaram à volta da minha cama
corvejando, agoirando, calaram o meu pensar
… parecia mesmo a morte a chegar

15.5.12

cinco sílabas ao acaso


agarro cinco sílabas ao acaso
dos livros narcotizados do meu quarto
que se acumulam em estantes decepadas
e têm poemas vomitados

de---formo as linhas que da mente brotam
num ses---go amanhã que me atormenta
e olho o pe---rolífero céu, agonizante
em a---ro---las aparelhadas pelos anjos

agarro cinco sílabas ao acaso
e de---ses---pe---ro

6.5.12

as noites de Vilnius

as noites de Vilnius
falam por entre as estrelas
e deixam-me acordado
com conversas sobre o amor
enrodilham-se entre lençóis
à procura do meu corpo
e fazem cócegas no peito
que se estendem até à alma
o sono ausenta-se, na calma
de aragens mornas envolvidas em cortinas
as noites de Vilnius
têm sorrisos refletidos nas janelas
como velas
que se estilhaçam em pequenos brilhos
roubados dos olhos de mulheres
nos telhados, escorregam carregadas de sonhos
inundam varandas
enfiam-se em becos sem saída
por brincadeira
e assustam gatos vadios
apanhados em contra-mão
as noites de Vilnius
têm luas que se refugiam nas torres das igrejas
em pecado
e um corpo suado
em delírio
que é o meu

2.5.12

descarrilamento


conto interminavelmente
as árvores que passam
pela janela da minha carruagem
vão dependuradas nas catenárias
pintadas com um verde manhã
acordado há pouco pelo sol
as árvores têm pássaros negros...
ainda dormem
com penas cansadas de voar
nos pesadelos dos carris
virgens
que não se abraçam nunca
que nunca se conseguiram tocar
contemplam-se...
num férreo amor de paralelismo platónico
que deixa Vilnius a uma hora e picos
do meu destino
adormeço...
e o poema que escrevo
(sacudido por um beijo violento)
acorda num comboio moribundo
tombado docemente sobre as linhas
entrelaçadas...

tiveram a sua primeira noite de amor
a cinco minutos de Kaunas

1.5.12

os pombos

os pombos
são doze
debicando pedaços de pão
com passos rápidos
e voos curtos
estão atentos aos movimentos da mão
que os sacia
sacodem bocados
numa lotaria que perdem ou ganham
em migalhas
não se assustam
com invasões de sapatos de salto alto, ruidosos
que, enfeitando os silêncios de "Laisvės alėja"
trazem primaveras agarradas aos tacões
os pombos
arriscam missões
planeadas no inverno
voam rasantes
sobre a menina de vestido vermelho, decotado
e roubam-lhe os sorrisos
que moram agora numa janela
outrora de caixilhos tristes

nota: „Laisvės alėja“ é a principal avenida pedonal de Kaunas

estes ventos de tristezas



 as tristezas são ventos que aparecem de repente
sem conhecermos as regras
ou as conjugações gramaticais
que possibilitem aprender os tempos de agitação
são as chuvas imprevistas
numa alma tropical
são os cheiros que invadem as cidades
quando pássaros mortos apodrecem nas cabeças dos vivos
entranham-se, as tristezas
entram por cada poro de pele
e navegam na circulação sanguínea dos corpos
aportando de noite no coração