26.7.09

almas que passam

foto: Paula Antunes (http://www.olhares.com/)

da janela dos sentidos
contemplo as almas que passam
lendo corpos que trespassam
a aragem distraída
indiferente e serena
duma vida adormecida

são movimentos fortuitos
de almas sempre agitadas
que caminham delicadas
e habitam tristes corpos.
são seres que sem esperança
se mantêm nesta andança
por caminho moribundo
perdendo-se na distância
que os separa do mundo

vejo almas sofredoras
que fazem da dor um culto
e por causa deste vulto
(fantasma aterrador)
transformam num tumulto
coisa simples que é o AMOR

a minha alma à janela
adormece os sentimentos
cansada de alguns tormentos
que a prendem numa cela
embala corpo descrente
e aguarda paciente
que alguém se lembre dela

25.7.09

lembranças em papel

as lembranças em papel
estão pintadas por pincel
com verbo fotografar
são registos preto e branco
que enfeitam com encanto
as memórias que entretanto
foram talhadas no peito
cinzeladas a preceito
por um desvelado olhar

repousam quase esquecidas
em páginas amarelecidas
de cheiro antigo e a mofo
mantêm-se assim caladas
sem gemido sem lamento
paralisadas no tempo
mas sempre, sempre acordadas
esperando madrugadas
onde num matar de saudades
se sentem enfim libertadas
voltando a ser conquistadas
por tintas apaixonadas

voa o perfume da terra
o som do vento a soprar
um batuque belo e distante
que não para de tocar
são capulanas de cor
em negras cheias de amor
palmeiras entrelaçadas,
que sorriem a acenar
sensações de chuva quente
que correm numa torrente
em ruas que nunca esqueci
são lembranças em papel
da cidade onde nasci

24.7.09

chuva morna de verão


a chuva morna de verão
tomba em ti, cai devagar
pendura-se em muitas gotas
como artistas de trapézio
em cabelo que tu soltas
e com mortais de ar quente,
depois de um balançar,
escorre perdidamente
num sorriso envolvente
prendendo em ti, meu olhar

vejo os teus lábios molhados
imagino o sabor
sentido quando tocados
pelos meus, secos, fechados
sedentos do teu amor

desejo chuva constante
para ter em cada instante
teu corpo assim desenhado
em vestido em ti colado
traço as linhas dos teus seios
adivinho teus anseios
sou por ti enfeitiçado

numa pele arrepiada
que percorro lentamente
deixo marcas de desejos
solto o rasto dos meus beijos
em trilha delineada
numa provável ilusão.
são molhados ternamente
pela chuva irreverente
que te despe docemente
nesta noite de verão

20.7.09

por estares assim, tão longe

foto: Pedro Miguel Bastos (http://www.olhares.com/)

por estares assim, tão longe,
perdi em ti, meu abrigo
mergulhando neste perigo
de sentir perder o norte.
voo sem um passaporte
sem partida e sem destino
como mago clandestino
que prevê a sua morte

por estares assim, tão longe,
não te toco, não te cheiro
não sou mais aquele arqueiro
que te fere o coração
decreto a minha expulsão
rastejo, perco paixão
liberto a tua mão
e caio em desfiladeiro

em queda vertiginosa
(por estares assim, tão longe)
solto no ar meus desejos.
no vento que me sufoca
largo os meus últimos beijos
que chovem como lampejos
e enchem a tua boca

18.7.09

deves estar a chegar

fotografia: Susana Rocha (http://www.olhares.com/)

deves estar a chegar
para eu poder repousar
para me dizeres que o mar
de lágrimas minhas choradas
foram por ti apanhadas
serviram p’ra navegar.
deves estar a chegar
para eu te abraçar
e agarrares as saudades
que escorrem do meu olhar
quero que sintas na pele
num sentido arrepiar
palavras amordaçadas
que guardei, p’ra te falar.
há esperas condenadas
dores lavradas por sarar
conversas só murmuradas
porque deves estar p’ra chegar

15.7.09

ombro confidente


pouso a cabeça em ombro que não vejo
acreditando ser teu, o meu desejo
sinto teus contornos quentes e desenho inocente
um esboço consciente
da extensão do teu braço em carícias ternas sobre a face
minha, dissolvida em dedos, teus, num enlace.
recuso abrir os olhos, porque sei que a mentira
onde gostosamente me envolvo
acordará como um polvo
com tentáculos de ira
e a realidade cruel
terá por certo sabor a fel
contraporá com a pele sedosa e quente
que imaginada sinto, deliciosamente
beijando o meu ouvido,
adormecido
no teu ombro nu e confidente


noite escrava


com a noite escrava
chega a tormenta
que me violenta
corrosiva e lenta
escorre como lava

traz velhos fantasmas
que durante o dia
mostram apatia
dormem sossegados
porque estão cansados
estão em afasia

à noite, tomando-me a voz
de maneira atroz
forçam-me a dizer
usando o escrever
dum lápis feroz
palavras sem senso
dum doer imenso
rijas como noz

vem então a dor
neutra é a cor
duma poesia
onde o desamor
por não ter calor
sem grande esplendor
pousa em cama fria

12.7.09

calo-me


ardo canela em fogueira d’alma
contemplando a chama lenta
e calo-me
vendo cinzas que caem
de um modo que me violenta.
sinto o corpo consumido, pendente
em palavras mudas que murmuro amargurado
e calo-me
num silêncio consistente.
calo-me cansado, completamente esgotado
matando palavras que grito
palavras que por escrito
agora rasgo, queimo na fogueira do destino
e calo-me,
por ti, por mim, por todos
suspendo o meu pensar,
cancelo, não falo em lodos
que com instinto assassino
me fazem clandestino
e me obrigam a calar.



11.7.09

luz de terra cheia


aluguei fracção de lua, com cratera
p’ra onde viajo acordado
lá, sem restrições, o sonho impera
liberta-se do terrestre cadeado

plantei espelhos no jardim
suspensos em aragem de esperança
que reflectem, quando quero, só p’ra mim
sorrisos aluados de criança

em noites com luz de terra cheia
passeio lentamente pelos mares
de lua, vazios d’agua, e à boleia
cunho pés descalços na areia
e deixo minhas marcas milenares

quando exausto desta caminhada
relembro os apol(l)os da história
que com passos gravados na memória
fizeram jornada apaixonada
são gregos, etruscos e romanos
recentes americanos
que em esforços sobre-humanos
construíram sua, nossa, glória

9.7.09

os cheiros das palavras

foto: Sara Amaral (http://www.olhares.com/)

as palavras têm cheiros
que procuro assinalar
são bocados de flores
que encontro no sorriso
dum amor ao despertar;
são fumos que a chuva fria
quase que por magia
à terra vem arrancar;
são sinais de alegria
que não param de acenar
quando alguém está p’ra chegar

são gostos peculiares
por especiarias distantes
que em pequenos instantes
nos levam a navegar
galgamos em caravelas
as agitações do mar
as tormentas de poemas
temperados com pimentas;
são mostardas, açafrões
trazidos por marinheiros
de cantos aventureiros
à imagem de Camões

as minhas, quase inodoras
passam dias, passam horas
a tentarem-se alindar
usam perfumes da moda
aromas de pôr à roda
fragrâncias de aconchegar;
são metáforas singelas
que pinto com aguarelas
e uso para adoçar

as palavras que hoje tenho
tento usá-las com engenho
tento pô-las a bailar;
são bálsamos de poesia
com rastos de maresia
mas são só para cheirar

7.7.09

asa de libertação (voo IX)

(escultura de Maria Leal da Costa)

Asa ferida, dorida
asa de libertação
tem sempre um voar sangrento
como a dor que num momento
de maneira destemida
te açoita o coração.
Esconde o seu sofrimento
com sorriso, numa pena
e com decisão serena
abandona o firmamento
escolhendo o movimento
de pousar na tua mão.

6.7.09

sombras


as sombras já não existem
porque o sol se recolheu
a lua mal apareceu
e escuridões diversas
com tonalidades dispersas
persistem em conversas,
fracas, mudas, apagadas,
frias, negras e cinzentas
cores à força retiradas
de paletas violentas

as noites reinam, tiranas
reprimem as cores humanas
galopam nos sentimentos
que em sufocados lamentos
contrapõem em motim

despertam-se então pensamentos
ao toque de clarim
com movimentos lentos
e sob ordem de sargentos
aparecem sonolentos
tentam acordar-se em mim

5.7.09

parado

foto: Susana Salgado Pires (http://www.olhares.com/)

parado, eu estou parado
sem vontade de esperar
parado sem sol sem lua
que iluminem uma rua
por onde eu possa passar

parado, capturado,
perfeitamente detido
insecto quase pútrido
envolvido numa teia
de rendilhado queimado
por ateada odisseia
que me deixa derrotado

parado, coração lento
com vontade de esgotar
baloiçando ao som do vento
anulando o batimento
que o vem alimentar

parado, dependurado
em ponteiro oxidado
de relógio solitário
por todos abandonado
e sem tempo p’ra contar

parado, eu estou parado
finjo que estou acordado
mas estou só a vegetar