30.9.12

porque...


porque as noites
voltaram a ser equações
de difícil resolução
porque o vazio
passou a ser um conjunto
quase infinito
dentro do coração
porque as incógnitas
tomaram uma enorme dimensão
porque a lua não é mais razão
de quociente inteiro
e a pequenez da minha mão
dentro deste universo
se aproximou do zero
desisto
parto
limito este poema
a um segmento de reta
sem meta
que se mistura com linhas curvas
de uma mente praticamente estática
e reduz a nada
o espaço cerebral
da matemática

(http://www.clube.spm.pt/arquivo/1417/)

43ª vez






Pela 43ª vez
Abri o livro
Pela 43ª vez
A tua vida em palavras
Escorre-se-me pelos dedos
Que procuram os teus olhos


Viajo contigo
Vendo o que tu viste
Colocando nos meus lábios
As coisas que tu disseste
Ouvindo as tuas canções
Que me lavam as tristezas

Pela 43ª vez
Abri o livro
E o comboio apitou três vezes
Quando o teu sorriso se desenhou na janela
Do lugar 43
Onde me sento

o medo


era uma vez o medo
que tinha medo de se ausentar
e o medo assim vivia
stressado
apavorado
amedrontado
num homem grande
que era forte
que era terno
que era bravo
que era lindo
mas era velho
e tinha dentro, aquele medo
de um dia se poder
apaixonar

antes do amanhecer



acordo antes do despertador tocar
mesmo a tempo de arrumar os sonhos
na gaveta da mesinha de cabeceira

desmancho-os, desencaixo-os
são pequenos puzzles
que coleciono e construo
quando os olhos de apagam

e a utopia invade desastradamente
o inconsciente noturno
habitante de uma memória
cada vez mais foragida

antes do despertador tocar
escondo-te em bocadinhos
conto-os
memorizo cada reentrância
cada encaixe perfeito do teu corpo
cada sinal, cada sorriso, cada trejeito

para eu não te perder
guardo-te assim todos os dias
antes do amanhecer

Era uma vez um país


Era uma vez um país
Sem pessoas
Era uma vez um país
Sem sorrisos

Sem pessoas
Era uma vez um país
Sem sentido
Sem sorrisos
Sem pessoas
Era uma vez um país
Sem afetos
Sem sentido
Sem sorrisos
Sem pessoas
Era uma vez um país
Sem bandeira
Sem afetos
Sem sentido
Sem sorrisos
Sem pessoas
Era uma vez um país
Destroçado
Sem bandeira
Sem afetos
Sem sentido
Sem sorrisos
Sem pessoas
Era uma vez um país
Já cansado
Destroçado
Sem bandeira
Sem afetos
Sem sentido
Sem sorrisos
Sem pessoas

Era uma vez um país
Já cansado
Destroçado
Assassinado
E com as vontades desfeitas

redondos vocábulos


… e nos redondos vocábulos
que nos teus lábios, imagino
deixo-me adormecer
redondamente esperando
pelos sonhos
que me tragam
a tua redonda voz…

um paraíso que não é o meu




é engraçado quando me falas de um paraíso
que não é o meu
aquele que te inspira
e te acorda a alma adormecida
deixando marcas num papel
para mim cruel
porque não é o meu
um paraíso vazio

quem sabe frio
onde eu não entro
mesmo que cá dentro
eu te tenha, em cada instante
eu te tenha, sempre brilhante
eu te tenha em flagrante
vontade de te ter

e errante
ando eu
escrevendo para ti, sem te fazer escrever
dizendo que tenho um paraíso
para quando te apetecer

foi engraçado quando hoje me falaste
de um paraíso que não era o meu

7.9.12

era uma vez um lápis de carvão...

(desenho de Paulo Pombo)

era uma vez um lápis de carvão
que, independentemente da mão
desenhava corpos sobre corpos
em belíssimas ilustrações sexuais.

um dia a censura apareceu.
o lápis, assustado, emudeceu
e independentemente da mão
as linhas que agora desenha
já não se vêem
e os corpos sobre corpos, estando lá
em belíssimas ilustrações sexuais
só com os dedos se reconhecem.

o lápis é agora um carvão clandestino
mora num beco que imagino
sem condições de “desenhabilidade”

era uma vez uma aranha...

era uma vez uma aranha muito magrinha
que gostava de poesia.

instalada na biblioteca municipal
construía cuidadosamente as suas teias
nas prateleiras dos autores
com sobrenomes iniciados por P.


um dia apanhou poemas de Pessoa
lidos ternamente em voz alta
por uma velhinha mouca.
a aranha, como louca
sugou-lhes todo o miolo
saboreando delicadamente cada estrofe.

ela, a aranha, agora de óculos e gorda, escreve
e a velhinha, definha
enredada nas fiandeiras da profícua idade.

4.9.12

sorriso

sem sono
arrasto uma qualquer caneta
sobre riscos desproposidados, negros
procurando a origem do Universo
que, ao amanhecer
encontro no canto inferior direito
da folha A4, branca

é o teu sorriso

Este tempo

Este tempo que não passa
E me castiga
A ficar dentro dum morto tempo
Assim parado
Vê outro tempo, correndo lesto
Que se desvia
Do corpo meu, que ensimesmado
Se envenena

Este tempo que louco mato
Com bala nua
Escorre sangue quando encontra
A madrugada
É tempo curto que me convence
À bofetada
Que o outro tempo nunca terá
Uma alvorada