31.12.12

(DES)INSPIRAÇÃO 43.159

por falta de inspiração matemática
erro propositadamente as contas de somar
as equações de graus suspeitos
os problemas das velocidades dos comboios
que partem em tempos diferentes
das estações espalhadas pelo corpo.
as matrizes confundem-se
com o emaranhado de linhas curvas
retas deformadas pela saudade
que sufocam a mente
cegam os olhos
e deixam os dedos incapazes de pensar.
hoje a incapacidade de escrever
engoliu todas as partes conscientes de mim
deixando sobre a mesa
uma folha branca de loucuras
e um esboço de poema, com rima
em quadras
onde as palavras se misturam com algarismos
numa caótica ordem difícil de entender:
43.235
ZINCO
378.743
CORTÊS

4+286.072
E DEPOIS?
478.236
PAPEIS

25.631
COMUM
43.159
CHOVE
sim, chove…
por falta de inspiração matemática
chove demência
sobre a folha branca
que se molha com algarismos e palavras
e se embebe devagar
em aguaceiros de poesia ilógica

ela não percebia nada de matemática...


ela
não percebia nada de Matemática
fazia equações de cosmética
antes das aulas
colocava os seus óculos DG
com aros de desenho infinito
vestido sempre restrito
corpo em movimento atrevido
num andar sinusoidal
que fazia tender para zero
a segurança rodoviária
nas ruas por onde passava
ela,em discursos eloquentes
mostrava as suas mãos convincentes
com dedos primos
que dividia por um, quando tinha namorado
e quando não tinha
dividia-os consigo própria
entrelaçando-os, agarrando um conjunto vazio
que se enchia rapidamente
de tanto aperto
tacões em segmentos de reta de 10 cm
um corpo de 3º grau
difícil de resolver
e muitas incógnitas
difíceis de se ver
era finita, perfeita, inteira
era bonita, suspeita, matreira
ela
(que não percebia nada de Matemática)
trazia sempre pedaços da matéria
envolvendo a sua existência

Mulher gorda


Olá mulher gorda
Desta noite magra
Onde não adormeço
E me aborreço

E escrevo palavras
Sem qualquer endereço
Que leves levantam
Num voo arriscado
Pousando, suaves
Nos teus fartos seios

Olá mulher gorda
Parada no escuro
Duma tela órfã
Com linhas esbeltas
Contornos ousados
Ferindo de morte
Todos os desejos
Que tombam discretos
Sobre teus cabelos

Meus olhos resistem
Imóveis, quietos
Até ao momento
Que num movimento
O teu corpo cheio
Estilhaça o quadro
Em dois mil pedaços
Que caem em abraços
Tão perto de mim

Olá mulher gorda
Só quero que saibas
Que tenho um pequeno
Bocado de ti

A história do tremoço

Era uma vez um tremoço
Com uma barriga grande
Quase a rebentar
Umbigo saído
E pedrinhas de sal em volta
Para apurar paladar


Vivia numa comunidade amarela
Num bairro quase chinês
Dentro da tasca do Quim
No prato numero três
Um fast food na Estrela

No manjar, a enfeitar
Quatro azeitonas pretas
E a acompanhar, uma loura
Cheia de espuma à cintura...

Lietuva


Aporto-me a ti
Abraço-te com força, a alma
Toco-te quando caminho
Sei-te de cor cada cheiro
Cada cor que entardece
E se solta e se desprende
Do céu que adormece

Pintando as árvores d’outono
Com um pincel de Maironis

Conheço-te a pele, tão macia
E as lágrimas com que enches
Tantos corpos, tantos lagos
Onde te vês ao espelho

Toco-te assim, quando chego
Suspendo o ar que me entra
Com frio bom para o peito
Quero ouvir-te as entranhas
E dizer-te que és minha
Vontade que tenho dentro
Quando arribo à noitinha
Com pressa de te rever
E de te chamar de rainha

ozonoterapia


as gotas caindo numa velocidade
que me parecia exagerada
entravam-me nas veias
como segundos apressados
empurrando os ponteiros de relógio
e assim esperava
contando histórias a mim próprio
revendo tudo
sorrindo a todos

os que me espreitavam na memória
e assim esperava
reconhecendo o meu corpo
antes de um adormecer diferente
respirando devagar
acertando o coração
mexendo cada dedo
como se acariciasse os teus lábios
e colhesse as lágrimas
que depois me entravam no sangue
em bocadinhos líquidos de ti
para que não morresse
antes de te voltar a ver

poema inacabado, ou não (XXII)

Os mortos fugiram das fotografias
Deixando buracos gelados entre os vivos
Que receiam agora cair
No esvaziado espaço de papel
Amarelecido pelo tempo

E por detrás de um vazio
Vejo-a…
Ceifando!

poema inacabado, ou não (XXI)

Fugimos hoje
Traz-te inteira
Vem ligeira
Tenho o corpo a foguear
Os lábios já estão gretados
Porque o frio da ausência
Desensinou-me o beijar

Fugimos hoje
Vem de maneira
Para nunca mais se voltar

poema inacabado, ou não (XX)

Com perna de vidro e olho de pau
Assalto navios perdidos
Em mares brancos, de papel.
Têm porões atulhados de raros poemas
Que vendo ao desbarato a traficantes de palavras
Com olhos de vidro e pernas de pau

Os papagaios recitam-nos
Nas tertúlias dos cais iletrados

poesia inacabada, ou não (XIX)


Os pequenos dias de Vilnius
cabem agora no meu bolso
e penduram-se na argola do porta-chaves
com medo de desaparecer.
Chegados a casa,
passam as noites no hall de entrada
acordados
sentados numa prateleira que tenho em frente do espelho
esperando pelo nascer do sol.

Por não dormir,
os pequenos dias de Vilnius tem olheiras cinzentas
grandes
que não me deixam ver
o azul do céu.

poema inacabado, ou náo (XVIII)

a terceira almofada
é a ausência do teu corpo
embrulhado numa fronha de desejo.
sabes?
tem dois botões que desabotoo todas as noites
para te espreitar os seios…

quando vens?

poema inacabado, ou não (XVII)

encontravam-se de fugida
por parcos cinco minutos
na estação de Vievis
diziam parvoíces de gente
e apitavam à despedida
como verdadeiros comboios apaixonados
um dia descarrilaram
um no outro
para se abraçar

os passageiros salvaram-se todos
alguns com escoriações pequenas
de amor

poema inacabado, ou não (XVI)

1,2,3
e ficavam despidos
numa matemática
onde mais nenhum número
se atrevia a entrar
depois
os dois corpos ardiam
com perfumes de morango e baunilha
desenhando sombras trémulas nas paredes
e desejos derretidos nos lençóis

1,2,3
foi a conta que ela fez

poema inacabado, ou não (XV)

colo-me a ti
e escorro-me em chuva
até ao peitoril da janela
aberta
para o inverno poder entrar

poema inacabado, ou não (XIV)

comia sobremesa
e a sopa sempre no fim
até ao dia que ficou pobre
e as sobremesas passaram a ser servidas
só aos ricos
que faziam fila
na Segurança Social

ele, ia para outra fila
a dos caldos
em malgas de alumínio
que faziam barulho
quando a colher encontrava o fundo
vazio.

poema inacabado, ou não (XIII)

no regresso a casa
procurei desesperadamente
pedrinhas negras.
encontradas,
meti-as na boca da alma
para não me esquecer que a morte existe

só depois percebi
que as deixaste no meu caminho
ontem
antes de partires

(para o meu tio)

poema inacabado, ou não (XII)

disseram-lhe para usar aparelho
tinha os molares tortos
e os incisivos perdidos
no meio dos caninos

… apeteceu-lhe mesmo usá-lo
para endireitar as gajas
que lhe encavalitavam a vida

poema inacabado, ou não (XI)

encontravam-se à sexta feira
numa esquina
onde havia um prédio
com janelas cariadas
e telhado raro, por causa da idade

um dia o prédio morreu de cirrose
a esquina deixou de existir
e eles acabaram o namoro
fugindo cada um para um cruzamento
com semáforos super modernos
prédios novos de telhados fartos
e janelas ainda de leite

poema inacabado, ou não (X)

um cigarro desejado
desagalhava-lhe o corpo
e consolava-lhe a alma
em conversas à porta do bar

depois era a febre que chegava
fumada na cama
por entre dois golos de chá de limão

poema inacabado, ou não (IX)

nunca lhe ofereceu flores
só beijos, chocolates, abraços e poemas
que ela consumia apressadamente
antes de chegar a casa

as flores eram demasiado perigosas
deixavam rastos de perfumes
comprometedores

poema inacabado, ou não (VIII)

um “amo-te”
dito como exemplo de um verbo do 1º grupo
deixou-a a naufragar
nas vagas altas dos risos trocistas dos colegas
nunca se soube
se foi um simples exercício
ou uma declaração simples de amor

ela
não voltou às aulas
ficou em casa
estudando verbos menos perigosos
de outros grupos gramaticais

poema inacabado, ou não (VII)

as voltas da alma
trouxeram-me à boca
o sabor ácido das saudades
uma Rennie
só aliviou um pouco os olhos
que deixaram de chorar

poema inacabado, ou não (VI)

o coração descarrila
quando, chegado à estação
fita os teus olhos brilhantes
pousados no relógio de ponteiros
que me parou a idade

o comboio, inocente, segue viagem
corrigindo a arritmia ventricular que trazia

poema inacabado, ou não (V)

escrever a preto
liberta-nos das dúvidas
que o branco deixa
nas palavras invisíveis
que não fomos capazes de dizer


o azul é para os indecisos...

poema inacabado, ou não (IV)

gosto de caminhar
olhando os meus passos
e os riscos em alto-relevo
traçados no cimento
só interrompidos
pelas passadeiras
que se atravessam no caminho
com linhas que se engordam
de branco sujo

poema inacabado, ou não (III)


o meu corpo arrasta-se
com um medo enorme de dormir
ouvi dizer-lhe
que a ausência de luz
quando adormece
traz elefantes
que se passeiam pela pele
fazendo riscos de sangue com as presas

poema inacabado, ou não (II)


a falta que tu me fazes
é diretamente proporcional
ao buraco que se abre na minha alma
onde caberás inteira
quando chegares

poema inacabado, ou não (I)

o cinzento do céu
passeia-se pela terra
pintando a melancolia
na paisagem
é um cinzento frio!
olhando-o
ficamos com medo de lhe tocar

30.10.12

Às escondidas








Morreu de noite
Às escondidas
Para não incomodar ninguém
Voou, engolindo o tempo
E o outono embalou seu corpo
Como se fosse folha amarela caindo devagar
Ela desistiu de esperar
Pela primavera

Enquanto eu dormia
Saltou para o infinito
Nem um grito deu
Nem uma palavra se libertou
Para hoje, se contarem histórias
Voou, engolindo o ar
Que lhe faltou na vida
Sorriu
Com o frio que lhe feriu as veias
Partiu
Às escondidas
Para não incomodar ninguém

Enquanto eu dormia
Chegou a morte
Para ela
Pela janela
Com tudo o que tem de puta
Com tudo o que tem de bela

NOTA: Uma noite destas, morreu Alge. Tinha 25 anos, caiu da varanda, junto à minha janela...

banho-Maria


Estou em banho-Maria
E a Maria, com a habitual ousadia
Está comigo.
Banho de água tépida
Beijando o seu umbigo
Círculo primoroso
Perigoso
Desenhado por Deus, a compasso.
Os seus seios, perfeitos, navegam
Gaivotas esfomeadas
Que com bicos em alerta
Furam ondas delicadas
Procuram minhas mãos
Submersas
Afogadas em espumas de ternura
Determinadas em esconder os pecados

O banho-onde-Maria me rouba o siso
É às vezes também salgado
Alimentado por desejos
Que dos olhos brotam
Por ela simplesmente estar
Num banho morno
Com o seu contorno
A transbordar, a tocar
A minha pele molhada
Como se uma horda de borboletas
Fosse capaz de mergulhar

18.10.12

Era uma vez uma noz


Era uma vez uma noz
Fechada, e nada dada
A diálogos secos
Como os dos frutos da sua espécime.
Casca grossa
Rugas que não são da idade
E cabeça dura
Sábia, madura, cheia de genialidade
Resultado da idade
E de estar sempre calada.
A noz vivia sozinha
Numa cozinha
Esquecida no peitoril
De uma pequena janela.
De lá
Contemplava a ruela
Por onde nós, os amigos da noz
Passávamos
Em diálogos frescos
Muitos, sem nexo
Alguns com mistura de sexo
Como os dos animais da nossa espécime.
Dizia eu
Que a noz vivia sozinha na tal cozinha
Até ao dia em que,
Só para mostrar aos amigos
A sua virilidade,
O homem das mãos fortes
A esmagou
Expondo em cada metade
As conversas silenciosas que a noz guardou
Durante a sua virgindade.

Nós, os amigos da noz
Fizemos luto
Perdemos a fé
Perdemos a voz
Por não a termos mais
Entre nós
Calada, quieta, pensante, tão bela
Naquela
Tão pequena janela

Só um




À noite somos só um
E o silêncio do escuro
Traz o silêncio de nós.
As paredes do quarto têm de vez em quando
Os faróis dos carros que passam na rua.
Deslizam devagar até à porta
E saem
Diluindo-se no pequeno corredor
Túnel de acesso à dor
Quando me levanto.
À secretária, senta-se a solidão
Olhando-me de soslaio
E o roupeiro enorme
Não dorme
Murmura ao som das dobradiças envelhecidas
Fazendo-me partidas
Quando tento adormecer.
À noite somos só um
E o meu corpo em slow-motion
Procura espaço de lençol sem facas
Que me deixe descansar
Os meus olhos, inventam coisas para olhar
Criam fantasmas que se desviam milagrosamente
Dos automóveis que quase se despistam
Na ombreira da saída.

Só um
E o silêncio rompido por vontade de gritar
Só um
E a dor estrebuchada por vontade de fugir
Só um
E o corpo destruído pela droga do pavor

À noite somos só um
Eu, a noite e só um...

a bandeira


decretou o presidente:
- tudo de pernas para o ar
decreto de 5 de outubro
num feriado a acabar
e o Zé do violino
que fazia mal o pino
torceu o pescoço com medo
ficou todo do avesso
mostrando todo o segredo

que tinha estampado por dentro
a Maria que era mouca
logo, logo se despiu
mas quase ninguém a viu
só o Manel reparou
que nada trazia por baixo
o mesmo Manel, que era cego
as mãos à cabeça levou
quis ser surdo, e com vista
para poder ser artista
igual ao que ali falou
- tudo de pernas para o ar
repetiu o presidente
e o ti Joaquim perneta
virou-se logo ao contrário
caminhando como novo
com um “andar” renovado
para o espantado povo
a Júlia, a florista
pousou para a “Caras” (revista)
junto à bandeira forçada
a cumprir, assim içada
a ordem do presidente

e o João que era tolo
correu gritando p’ra ela
chorou, porque era um louco
ou porque, como nós todos
tem direito a s’indignar
num país Adamastor
a acordar lentamente
plantado à beira mar

despe-te


despe-te só para mim
tira os segredos
e medos
tira as sombras que escurecem
os olhos de ametista
e te pintam as tristezas
que me entristecem a mim
põe-te nua
mostra a alma
com sensualidade e doçura
deixa-me passar os lábios
pela saudade tua
abraça-me com um sorriso
que me chega excitado
pelos gestos que te faço
quando meio enfeitiçado
morro por um momento
nos lençóis riscando o tempo
que conto por não te ver

despe-te só para mim
por favor, diz que o fazes
não está frio por cá
porque o vento que passeia
na vida que construí
sopra quente, diz-se ligeiro
porque te quer beijar a ti

visita anunciada


espero a dor
como visita sempre anunciada
por sirene que me percorre todo
deixando-me acordado, desejando a morte.
chega de repente, como Ela,
e vai minando cobardemente, a carne por onde passa.
incendeia o sangue - raio de pirómana que rasteja
por entre o capim seco da idade
chegou a dor
e praguejo com toda a força que tenho concentrada na língua
esfaqueio a pele com dedos afiados pela raiva
procuro pelos cantos do corpo que dobrados
me podem trazer o paraíso, por momentos
luto desesperadamente pela luz
pelo entendimento que me descanse a alma
e anestesie as pernas, os braços, a mente
desisto, de repente
e engulo sofregamente o milagre
que me deixa apagar o fogo
aquele que quase me deixou demente

30.9.12

porque...


porque as noites
voltaram a ser equações
de difícil resolução
porque o vazio
passou a ser um conjunto
quase infinito
dentro do coração
porque as incógnitas
tomaram uma enorme dimensão
porque a lua não é mais razão
de quociente inteiro
e a pequenez da minha mão
dentro deste universo
se aproximou do zero
desisto
parto
limito este poema
a um segmento de reta
sem meta
que se mistura com linhas curvas
de uma mente praticamente estática
e reduz a nada
o espaço cerebral
da matemática

(http://www.clube.spm.pt/arquivo/1417/)

43ª vez






Pela 43ª vez
Abri o livro
Pela 43ª vez
A tua vida em palavras
Escorre-se-me pelos dedos
Que procuram os teus olhos


Viajo contigo
Vendo o que tu viste
Colocando nos meus lábios
As coisas que tu disseste
Ouvindo as tuas canções
Que me lavam as tristezas

Pela 43ª vez
Abri o livro
E o comboio apitou três vezes
Quando o teu sorriso se desenhou na janela
Do lugar 43
Onde me sento

o medo


era uma vez o medo
que tinha medo de se ausentar
e o medo assim vivia
stressado
apavorado
amedrontado
num homem grande
que era forte
que era terno
que era bravo
que era lindo
mas era velho
e tinha dentro, aquele medo
de um dia se poder
apaixonar

antes do amanhecer



acordo antes do despertador tocar
mesmo a tempo de arrumar os sonhos
na gaveta da mesinha de cabeceira

desmancho-os, desencaixo-os
são pequenos puzzles
que coleciono e construo
quando os olhos de apagam

e a utopia invade desastradamente
o inconsciente noturno
habitante de uma memória
cada vez mais foragida

antes do despertador tocar
escondo-te em bocadinhos
conto-os
memorizo cada reentrância
cada encaixe perfeito do teu corpo
cada sinal, cada sorriso, cada trejeito

para eu não te perder
guardo-te assim todos os dias
antes do amanhecer

Era uma vez um país


Era uma vez um país
Sem pessoas
Era uma vez um país
Sem sorrisos

Sem pessoas
Era uma vez um país
Sem sentido
Sem sorrisos
Sem pessoas
Era uma vez um país
Sem afetos
Sem sentido
Sem sorrisos
Sem pessoas
Era uma vez um país
Sem bandeira
Sem afetos
Sem sentido
Sem sorrisos
Sem pessoas
Era uma vez um país
Destroçado
Sem bandeira
Sem afetos
Sem sentido
Sem sorrisos
Sem pessoas
Era uma vez um país
Já cansado
Destroçado
Sem bandeira
Sem afetos
Sem sentido
Sem sorrisos
Sem pessoas

Era uma vez um país
Já cansado
Destroçado
Assassinado
E com as vontades desfeitas

redondos vocábulos


… e nos redondos vocábulos
que nos teus lábios, imagino
deixo-me adormecer
redondamente esperando
pelos sonhos
que me tragam
a tua redonda voz…

um paraíso que não é o meu




é engraçado quando me falas de um paraíso
que não é o meu
aquele que te inspira
e te acorda a alma adormecida
deixando marcas num papel
para mim cruel
porque não é o meu
um paraíso vazio

quem sabe frio
onde eu não entro
mesmo que cá dentro
eu te tenha, em cada instante
eu te tenha, sempre brilhante
eu te tenha em flagrante
vontade de te ter

e errante
ando eu
escrevendo para ti, sem te fazer escrever
dizendo que tenho um paraíso
para quando te apetecer

foi engraçado quando hoje me falaste
de um paraíso que não era o meu

7.9.12

era uma vez um lápis de carvão...

(desenho de Paulo Pombo)

era uma vez um lápis de carvão
que, independentemente da mão
desenhava corpos sobre corpos
em belíssimas ilustrações sexuais.

um dia a censura apareceu.
o lápis, assustado, emudeceu
e independentemente da mão
as linhas que agora desenha
já não se vêem
e os corpos sobre corpos, estando lá
em belíssimas ilustrações sexuais
só com os dedos se reconhecem.

o lápis é agora um carvão clandestino
mora num beco que imagino
sem condições de “desenhabilidade”

era uma vez uma aranha...

era uma vez uma aranha muito magrinha
que gostava de poesia.

instalada na biblioteca municipal
construía cuidadosamente as suas teias
nas prateleiras dos autores
com sobrenomes iniciados por P.


um dia apanhou poemas de Pessoa
lidos ternamente em voz alta
por uma velhinha mouca.
a aranha, como louca
sugou-lhes todo o miolo
saboreando delicadamente cada estrofe.

ela, a aranha, agora de óculos e gorda, escreve
e a velhinha, definha
enredada nas fiandeiras da profícua idade.

4.9.12

sorriso

sem sono
arrasto uma qualquer caneta
sobre riscos desproposidados, negros
procurando a origem do Universo
que, ao amanhecer
encontro no canto inferior direito
da folha A4, branca

é o teu sorriso

Este tempo

Este tempo que não passa
E me castiga
A ficar dentro dum morto tempo
Assim parado
Vê outro tempo, correndo lesto
Que se desvia
Do corpo meu, que ensimesmado
Se envenena

Este tempo que louco mato
Com bala nua
Escorre sangue quando encontra
A madrugada
É tempo curto que me convence
À bofetada
Que o outro tempo nunca terá
Uma alvorada

13.8.12

nestes tempos segundos

nestes tempos
em que as noites já não chegam aos meus olhos
e somente o teu sorriso
se balança nos meus dedos
suspendo as minhas mãos
do corpo
e espero
até ouvir as tuas gargalhadas

nestes tempos primeiros

nestes tempos
em que as noites já não chegam aos meus olhos
nestes tempos
em que me descubro das sombras
que se debruçam num todo
e ocupam a minha mente alterada
nestes tempos
em que as desobediências do corpo
jazem na cama alheada
nestes tempos
de alma e escrita cansada
vivo
porque vives
e moras eternamente na minha pele
ajeitada
para te poder abraçar

2.8.12

algazarra




chamei-os a todos
anjos, fantasmas, Deus
e o diabo
vieram, encheram-me a casa
e a alma
petiscaram, beberam cerveja
fizeram apostas
no jogo que corria na televisão
não abrindo mão
de influenciar resultados.
no meio da algazarra
Deus ganhou
e o diabo desapareceu
a três segundos do fim
deixando o soalho queimado
e um terrível cheiro a amoníaco
que matou um dos fantasmas

era o meu
agora eu
posso dormir sossegado

mil ventos





o meu dormir tem mil ventos

que se enrodilham no corpo
me fazem pássaro noite
e me levam a voar
num corpo sem asas, morto

a noite tem mil estrelas
com luzes sem se apagar
mesmo que o vento que trago
lhes sopre com muitos lábios
as deixem cheias de frio
as deixem a cintilar

as mil formigas que brincam
nos dedos das minhas mãos
deixam rastos de saudade
nas estradas que elas trazem
sinais do tempo que passa
mesmo que o relógio bata
só dentro do coração

tenho tanta solidão
que me entra p’la janela
e o meu dormir tem mil ventos
que se abraçam fortes, a ela…

16.7.12

O mapa




Estendi o mapa sobre a mesa da cozinha
e desenhei com o dedo indicador
todos os países que nos separam.
Encontrei as cidades com os olhos fechados
e imaginei os teus passos em Barcelona
o teu sorriso sentado num banco de jardim, em Paris
o teu corpo cansado numa cama de Londres
e de mãos dadas, contigo, em Frankfurt
ouvi protestos
por nos banharmos sem roupa numa fonte da praça principal.
Dobrei o mapa, alterando todos os vincos
fazendo desaparecer os países que nos separam
e as cidades onde estamos
deitaram-se abraçadas
beijaram-se sobrepostas
e fizeram amor toda a noite
elas, como se fossemos nós

Irracional tempestade



Declarada guerra!
Os números naturais, deixaram de ser naturalmente 
... pacíficos 
e a guerra instalou-se!
Guerra entre não primos e primos
de cabeça alterada.
Guerra de família
números do mesmo sangue
despedaçando-se em bocados
num papel quadriculado
reciclado
que se manchou de despojos
que se encheu de farrapos
de borracha esbranquiçada
arma mortal inventada
na era dos descobrimentos.
Euclides irritou-se
e dos céus de Alexandria
soprou, soprou, soprouuuuuuuuu
violenta tempestade
sobre o campo de batalha.
E em perfeita agonia
a irracionalidade chegou
aos números dilacerados.

Morreram em pequenos bocados
na memória de Hipaso
Hipaso de Metaponto

(http://www.clube.spm.pt/arquivo/1363)

2.7.12

O sol

O sol entrava-lhe de noite pela janela
Inundava-lhe o quarto, o corpo e a alma
E a luz, com muitos dedos, abria-lhe os olhos
Todas as noites, confundindo-lhes os dias.
O sol entrava-lhe sorrateiramente pela janela
Procurando as frinchas de si
Acordando vísceras, sangue, e a carne
Deixando incomodativos rastos quentes
Que não o deixavam dormir

Ontem, de madrugada, o sol entrou-lhe pela janela
Ele apanhou-o e
Deixou-o em efervescência num copo de água junto à cama
Bebeu-o pela manhã
E a cidade ficou para sempre às escuras…

25.6.12

A pedra



A mulher encontrou a pedra filosofal
No jardim
Lavou-a de algumas utopias
Que conspurcavam a sua alvura
E guardou-a num tupperware verde
De hermetismo elevado
Num armário de cozinha reservado
A orgasmos culinários.
A mulher, leu cuidadosamente a receita
Ferveu a água com a pedra
E convidou os amigos para a sopa.
Dizem os vizinhos que era meia-noite
Quando viram sair de casa
Todos os filósofos que estudaram na escola.

O espirro



Espirrei.
E o cérebro saiu-me pelo nariz
Deixando a memória reduzida a zero.
Agora o tempo,
O tempo, é o exato momento
Que os meus olhos vêem
E assim vegetando
Sou a flor da tua janela
Que regas todas as manhãs
Com sorrisos orvalhados.

24.6.12

A tempestade


Diria que a eletricidade líquida
Desabou sobre as ruas
Provocando correntes histéricas
Que transbordavam
E levavam
Restos de sonhos da cidade.
Náufragos agarravam-se a fragmentos de flores
Arrancadas por electrões, dos jardins
Sereias atordoadas
Despiam-se das escamas
Mostrando sexos resplandecentes
E nas janelas
Espreitavam anjos
Apreciando as virgindades
E esperando pela bonança.

Diria que hoje, a tempestade
Trouxe uma indelével vontade
De mudança.

23.6.12

pequenos desenhos em mim


voltaste
com o mesmo perfume na pele
e as mãos dizendo coisas
que calaram o coração
voltaste
com sorrisos que se sentem
e os olhos em espelho
onde me vejo e penteio
o meu ego em desalinho
chegaste
com histórias que desejo
com canções de top próprio
que se misturam com risos
e notas como andorinhas
que cortam aos pedacinhos
o céu que está à janela
são tesouras que voando
trazem bocados de azul
que vestes, cobrindo os seios
pintas as unhas, os lábios
e os sapatos de salto
também se tingem assim

voltaste, chegaste, deixaste
pequenos desenhos em mim

sete (7)





1 poema atrapalhado
……. escrito em cima do tempo
2 mãos em debandada
……. voando por um corpo incerto
3 horas de chuva intensa
……. deixando a alma encharcada
4 cerejas no prato
……. sobremesa rejeitada
5 dedos que eu esqueço
……. por serem da mão esquerda
6 estrelas que reconheço
……. serem minhas aliadas
7 jornadas levadas
……. por pensamentos insanos
7 dias sem os santos
……. num Junho perdido na estrada
7 colheres de areia
……. dum castelo, de uma praia
7 contos, são de fadas
……. que já não são encantadas
7 palavras cruzadas
7 minutos de sono
7 anjos já sem guarda
....... pairando nas bermas do céu
……. esperando pelas contas
……. que o poeta escreveu

(http://www.clube.spm.pt/arquivo/1291)

14.6.12

um sorriso e uma mão



bastava um sorriso e uma mão
mesmo que as palavras, cansadas
se ausentassem, atordoadas
e esta noite ficassem simplesmente paradas
nos teus lábios, a descansar
bastava um sorriso e uma mão
e a noite deitar-se-ia a meu lado
assustando a solidão
que me apoquenta e me tolda o coração
um sorriso e uma mão
palavras não, para não riscarem o silêncio
que preciso de tomar
que preciso de beber
para adormecer
e imaginar a tua respiraçãoa beijar os meus cabelos

tão simples: um sorriso e uma mão
palavras, não…

6.6.12

chuva de angústias


a manhã acordou
cheia de chuva de angústias
cheia de tormentas
de medos
de dores, escorrendo
pelos dedos
de águas nervosas
encharcando a pele
enfiando-se pelos poros
chegando aos ossos
que rangem alto
em gemidos de tempo e bolor
Oh corpo abandonado
em esperas longas
e pavores difíceis de entender
Oh alma maldita
que se arrasta em utopias
frias
impossíveis de aquecer
Oh opressão parasita
catarse troglodita
Pára! Ouve-me!
deixa-me morrer!

5.6.12

Vilnius, 5:30 da manhã


Vilnius, 5:30 da manhã
junho, 2
importante: sábado
gente
pouca gente, a acordar
outros, muitos, a vaguear
restos de prazeres mal digeridos
álcool
prostitutas
berros
homens em algazarra
bêbados
mulheres de saltos altos
roupa bizarra
em pele molhada de suor
garrafas vazias
cheias de histórias de ódio
e de amor
e eu, sóbrio, gelado
preocupado
a ajeitar
as palavras
as imagens
as viagens
na mente
e o sol, despretensiosamente
a brilhar
indiferente ao cenário
criado
neste filme real
e eu, caminhando
evitando corpos cambaleantes
com cheiro da vodka
entornada pela noite
na garganta e na alma
corpos tropeçando
no nada
com olhos turvos, quase opacos
passos fracos
desaprendidos de caminhar

Vilnius, 5:30 da manhã
opened 24 hours
hambúrgueres americanos
digeridos
engolidos na maré
das conversas sem princípio nem fim
jornais grátis ainda ausentes
as avenidas carentes
dos afagos dos pneus
as janelas insolentes
despidas
vestidas de cortinas transparentes
as montras pacientes
esperando pelos olhos
que aconcheguem vaidades
os canteiros renitentes
a mostrarem suas flores
papeleiras resistentes
a não morrerem carregadas
de merdas não recicladas
e os pássaros, indiferentes
sem corpos estranhos no sangue
voam, cantam Vivaldi
esvoaçam primavera
num céu que ainda espera
por mais gente
acordada

Vilnius, 5:30 da manhã
junho, 2
importante: sábado!

rebuçados de tristeza

- profissão?
- vendedor
- de quê?
- rebuçados de tristeza
   para quem está feliz
- têm saída?
- só à noite
quando a felicidade incomoda
e os sorrisos são tantos
que já não te deixam dormir
- parece-me coisa estranha
utopia taciturna
açúcar falsificado
droga adulterada
comprimido do desamor
- se estás feliz, experimenta
ficas triste como um louco
e eu enriqueço um pouco
vendendo mágoa embrulhada
em papelinho de prata
que docemente te mata
e voltas a sentir dor
- compro um
parece-me que vou tentar
maldita felicidade
que não deixa descansar
- toma, repousa em paz
por agora por um dia
curte a melancolia
fica feliz, infeliz…

3.6.12

sapatos vermelhos

sinto-me encarnado
sangue entornado
momento cuidado
a pensar em ti
sinto-me lento
acordado
apalavrado pelo diabo
no mercado aberto
da noite
sem lugar certo
onde cair
encarnado de despir
encarnado de partir
encarnado de parir
sonhos, sorrisos, suspiros
despidos em linho estendido
em lençol branco esquecido
no chão
onde estão
os teus sapatos vermelhos
espelhos
de desejos...

1.6.12

não sei se gostas de cerejas



não sei mesmo se gostas de cerejas
ou só por teres nascido em maio
as cerejas passaram a gostar de ti
hoje, por causa das cerejas, sentei-me para escrever
e os teus olhos, sempre azuis (não sei se por causa das cerejas)
espreitavam as palavras que elegia
escolho-as tocando cada uma com dois dedos (como as cerejas)
procuro as mais doces
gosto das palavras que se possam trincar
e, sumarentas, nos enchem a língua de sabores vermelhos, quentes
gosto das que se penduram em pezinhos com folhas de cerejeira
são tão boas para um poema, em compota…

sabes, não sei mesmo se gostas de cerejas
não me lembro
e não me importo mesmo nada que não te lembres também
as cerejas, levam-nos a memória
fazem-nos esquecer
as coisas
os dias
e as notícias dos jornais
que são sempre as mesmas

Pai, eu não sei mesmo se gostas de cerejas…

29.5.12

borboletas da noite


as borboletas da noite
têm olhos enormes e asas com desenhos que assustam
quando se libertam, e em nuvens de pó
se colam nos vidros das janelas, construindo histórias de pavor
as noites, que são quentes, estão cheias de borboletas
com olhos de pessoas mortas e asas de aviões fantasma
perdidos pela torre de controlo
ouço-as a conversar na janela
e imagino que não são da noite
(as borboletas)
mas das flores que de manhã tu me trazes
antes dos aviões se despenharem nos sentidos
e dos olhos enormes rolarem sobre mim
cegando as vontades que ainda tenho

25.5.12

uma questão de coração


decididamente
deixou de ser uma questão de matemática
inubitavelmente
desenquadrou-se de qualquer teoria
passou ao lado de leis e operações
perdeu-se em caminhos pejados de incógnitas
passeou-se por equações de grau elevado
e soluções impossíveis
à noite, principalmente à noite
pesava quilos e quilos de palavras
por dizer
despertava filósofos e matemáticos
que viviam nas brumas
procurando identificar a razão
da sua existência
foi perseguida pela inquisição
não tendo no entanto sido encontrada
qualquer religiosa motivação
à noite, principalmente à noite
chorava
contrariando todos os princípios matemáticos
que de lágrimas não percebiam nada
pensou-se poder ser um elemento geométrico
um polígono com muitos lados
ângulos apertados, causando sofrimento e dor
recusado!
demasiado evidente, devido à intensidade
que variava com a distância
e com a ausência
de algo não identificado
conclusivamente
deixou de ser uma questão de matemática
não!
aquela saudade
era simplesmente uma questão de coração


(http://www.clube.spm.pt/arquivo/1206)

23.5.12

silêncios


encerro os lábios para te falar com os silêncios que recolho
das palavras dos romances de amor
as minhas, as que reverberam na minha garganta seca
e que às vezes tento alinhar em sms’s que me parecem belos
morrem na escuridão da noite, porque já dormes
ou porque os romances são numa língua esquisita que não entendes
falo esta noite com os silêncios que tu gostas
e espero um amanhã ruidoso de sorrisos

21.5.12

um livro novo

um livro novo abre-se religiosamente a meio
pressionam-se as páginas assim abertas
até o primeiro choro das palavras
se libertar no ar
depois
abrem-se religiosamente a meio
cada uma das duas partes, anteriormente abertas
e as palavras, com sorrisos, conhecem os dedos que
página depois de página
as  irão afagar

um livro novo, começa-se assim
religiosamente a amar

19.5.12

os meus pássaros negros



e o escuro era tão escuro
que os meus pássaros negros apareceram sem se ver
e só os grasnares violentos entraram por dentro de mim
pintando de negro todo o sangue que me chegava ao coração
e o escuro era tão escuro
que os meus pássaros negros chegaram sem avisar
e o vento semeado por suas asas negras
me ofereceram um vento podre, um ar viciado para respirar
e o escuro era tão escuro
que os meus pássaros negros não precisavam de olhos para enxergar
e os meus, também escuros
cegavam aos poucos, feridos por agulhas sem linhas para chorar
e o escuro era tão escuro, mas tão tão escuro
que os meus pássaros negros
pousaram à volta da minha cama
corvejando, agoirando, calaram o meu pensar
… parecia mesmo a morte a chegar

15.5.12

cinco sílabas ao acaso


agarro cinco sílabas ao acaso
dos livros narcotizados do meu quarto
que se acumulam em estantes decepadas
e têm poemas vomitados

de---formo as linhas que da mente brotam
num ses---go amanhã que me atormenta
e olho o pe---rolífero céu, agonizante
em a---ro---las aparelhadas pelos anjos

agarro cinco sílabas ao acaso
e de---ses---pe---ro

6.5.12

as noites de Vilnius

as noites de Vilnius
falam por entre as estrelas
e deixam-me acordado
com conversas sobre o amor
enrodilham-se entre lençóis
à procura do meu corpo
e fazem cócegas no peito
que se estendem até à alma
o sono ausenta-se, na calma
de aragens mornas envolvidas em cortinas
as noites de Vilnius
têm sorrisos refletidos nas janelas
como velas
que se estilhaçam em pequenos brilhos
roubados dos olhos de mulheres
nos telhados, escorregam carregadas de sonhos
inundam varandas
enfiam-se em becos sem saída
por brincadeira
e assustam gatos vadios
apanhados em contra-mão
as noites de Vilnius
têm luas que se refugiam nas torres das igrejas
em pecado
e um corpo suado
em delírio
que é o meu

2.5.12

descarrilamento


conto interminavelmente
as árvores que passam
pela janela da minha carruagem
vão dependuradas nas catenárias
pintadas com um verde manhã
acordado há pouco pelo sol
as árvores têm pássaros negros...
ainda dormem
com penas cansadas de voar
nos pesadelos dos carris
virgens
que não se abraçam nunca
que nunca se conseguiram tocar
contemplam-se...
num férreo amor de paralelismo platónico
que deixa Vilnius a uma hora e picos
do meu destino
adormeço...
e o poema que escrevo
(sacudido por um beijo violento)
acorda num comboio moribundo
tombado docemente sobre as linhas
entrelaçadas...

tiveram a sua primeira noite de amor
a cinco minutos de Kaunas

1.5.12

os pombos

os pombos
são doze
debicando pedaços de pão
com passos rápidos
e voos curtos
estão atentos aos movimentos da mão
que os sacia
sacodem bocados
numa lotaria que perdem ou ganham
em migalhas
não se assustam
com invasões de sapatos de salto alto, ruidosos
que, enfeitando os silêncios de "Laisvės alėja"
trazem primaveras agarradas aos tacões
os pombos
arriscam missões
planeadas no inverno
voam rasantes
sobre a menina de vestido vermelho, decotado
e roubam-lhe os sorrisos
que moram agora numa janela
outrora de caixilhos tristes

nota: „Laisvės alėja“ é a principal avenida pedonal de Kaunas

estes ventos de tristezas



 as tristezas são ventos que aparecem de repente
sem conhecermos as regras
ou as conjugações gramaticais
que possibilitem aprender os tempos de agitação
são as chuvas imprevistas
numa alma tropical
são os cheiros que invadem as cidades
quando pássaros mortos apodrecem nas cabeças dos vivos
entranham-se, as tristezas
entram por cada poro de pele
e navegam na circulação sanguínea dos corpos
aportando de noite no coração

28.4.12

urgência de ti



tenho urgência de lua cheia
e de céus onde as estrelas
façam estradas de luz
tenho urgência de chuva morna
que me liberte dos frios
e me traga um abraço
de água doce ou salgada
que tempere os medos meus
urgências coleccionáveis
nos bolsos de uma alma
que de noite se liberta
dum corpo adormecido
nos braços sonhados teus
tenho urgências nas saudades
e nos tempos encostados
em infinitos de esperas
tenho feras, tenho tralhas
tenho alguns passos perdidos
tenho noites apagadas
e os olhos sempre abertos
alcançando os desertos
das ausências momentâneas
tenho urgências já sem hora
tenho caixas de Pandora
em cada um dos sentidos
que se encontram perdidos
nos textos que escrevi
tenho tremuras nos dedos
enquanto rezo os credos
por ter urgência de ti

26.4.12

o Neris, um café e tu

o Neris, um café e tu
bebi o Neris, beijei o café
e deixei-te transbordar
nas margens de mim
numa enchente de desejos de inverno
derretidos no espreitar da primavera
o Neris, um café, e tu
beijei o Neris, transbordou o café
e bebi dos teus lábios
as saudades que esprememos
dos frutos que colhemos
em tempos de tanta espera
o Neris, um café e tu
bebi o café e com o Neris a transbordar
beijei-te naquele nosso luar
como se fosse a primeira vez
o café, escorrendo
na pacatez das gargantas
o Neris, a correr numa mudez
de águas escuras, prolongamento da noite
que embelezou nossos passos
e deixou os teus abraços
a navegar em mim
tu
o Neris
e um simples café
encheram de amor, a minha noite

nota: Neris é o rio que passa em Vilnius e avisto da minha janela

25.4.12

Alice

Alice apareceu por aqui
Lewis Carroll ligou
e disse que Alice abandonou
as histórias de encantar
deixou o coelho branco a chorar
e partiu para parte incerta
mal sabia ele que era certa
a parte onde ela encoberta
chegou
bebemos chá de loucos
em dia de não aniversário
e Alice trouxe um diário
que lemos fumando o cachimbo
da Caterpillar, a lagarta
que farta (disse-me Alice)
escreveu uma carta
renunciando ao país das maravilhas

Cheshire cat aparecia em páginas pares
e sorria
e desaparecia
depois surgia, nas ímpares
provocando a ira de Alice
que convulsivamente chorou um mar de lágrimas
onde quase me afoguei
e por um triz quase perdia
o mundo de magia
que me desgarra da solidão

fui salvo de repente pela tua mão
aquela que me trouxe Alice
aquela que por doidice
desejo agarrar durante as noites
pintadas de alcatrão