31.12.10

o infinitamente azul


o infinitamente azul chegou, devagar
podia ser luz
ou os teus olhos
diluídos nos sentidos
que se enfraquecem no tempo
podia ser, quem sabe, o mar
gemendo na praia que foge
por dentro de uma ampulheta
podia ser... o céu onde me perco
procurando a tua estrela
que (de)cadentemente se esvai

o infinitamente azul chegou, devagar
como uma fatalidade absolutamente normal
que vem roubar
de uma forma absolutamentemente casual
o sopro do teu respirar
do meu cabelo curto e ligeiramente nevado

podia ser um sorriso meu
simples, tímido, singelo
que, à noite, se rasga com o tropeçar
no destino que nos faz mudar de cor

o infinitamente azul queria definitivamente ficar

22.12.10

vamo-nos

vamo-nos diluindo
nas ignorâncias que bebemos
vamo-nos perdendo
de propósito
nas palavras sem sentido
nos amores desconstruídos
que se vomitam em gritos

vamo-nos adormecendo
embalados por passados
desfocados
desformatados
em 8 mm mal contados
vamo-nos arranhando
nos arames bem farpados
dos caminhos apagados
para onde, de olhos fechados
nos lançamos

vamo-nos arrastando
por desejos liquidados
caindo
despindo os arrepios
que foram tão desejados

bocadinhos dos teus olhos

pedaços de céu azul
repousam num branco-inverno
que se estende no olhar
quando abro a minha porta
são flocos desprendidos
de um quadro genial
que cobre hoje o firmamento
em tela acidental

são a tinta apetecida
que muda a cor dos meus frios
e aviva os sentidos
adormecidos na alma

são também (tu acredita)
bocadinhos dos teus olhos
pendurados em sorrisos
que imagino pr'a mim
são as palavras escritas
na neve que em papel
se estende no olhar
quando eu te abro a porta

14.12.10

anjos de Natal

pintura de Hugo Simberg


a neve já caía sobre a mesa
em noite que diziam ser NATAL
quando o frio servido de surpresa
os deixou numa letargia final

cansados, despojados de certezas
só silêncios lhes faziam companhia
lembravam mentalmente as belezas
que houveram no passado, nesse dia

os anjos com as asas já quebradas
por gelos d'almas pobres desavindas
deixam árvores de natal iluminadas
com lágrimas feitas de estrelas lindas

morreram os meus ANJOS DE NATAL
chegaram sem notar ao fim da linha
perderam estatuto imortal
ganharam uma alma como a minha

11.12.10

para Catarina


triste
quando o teu sorriso se esconde numa lágrima
e a tua voz se dissolve
no choro de uma guitarra
parada, num fado cantado
tantas vezes a teu lado
tantas vezes à desgarrada
triste
quando os desenhos do teu corpo
repousam imóveis em papel
numa imagem distorcida
deixada por um covarde pincel
triste
quando o tempo se distrai
não parando à passagem
duma morte que te trai
triste
por ler as palavras que repousam indiferentes
num futuro abalroado
por destino não escrito
em letra de nenhum fado
triste por não te ver a cantar
triste por tua sina
triste porque partiste
triste por ti, Catarina

1.12.10

sussurros

os dias arrastam-se na viscosidade
das banalidades que me amolecem
derreto-me pela vida, deixando rastos para identificar
marcas afundadas pela tua ausência
amarrado a falsas liberdades
que me consomem as vontades de voar
os dias arrefecem ao ritmo imparável do calendário
e trazem para dentro de mim
a neve que enche os canteiros do jardim
que observo da janela do meu quarto
os dias perdem luz
devorados pela noite expelida pela alma
perdem as horas mais claras
ganham minutos negros
que deixam às escuras o meu corpo
os dias diluem-se uns nos outros
confundindo-me os sentidos
não sinto o que vejo
não cheiro o que bebo
não vejo o que cheiro
os dias deitam-se a meu lado
e com o único sentido que me resta
ouço as palavras que sussurras de tão longe




28.11.10

o cortejo da morte


estamos esperando a morte
com toda a sua alongada corte
de anjos e diabos em cortejo
estandartes ao vento, em primeiro
com cores tingidas por nevoeiro
e silêncios em marchas militares

a cidade dos vivos veio ver
o desfile de artefactos de morrer
figuras rastejando, agoniantes
risos de hienas e encher
o ar com sons acutilantes

abutres sobrevoam as cabeças
presas a corpos assustados
por um fio de medo a escorrer
olhos de terror saem das órbitas
e rolam perdidos por encantos
das virgens que vieram se perder

a morte desfila empoleirada
no andor da vontade de viver
sorri e acena à multidão
que se agita como mar encapelado
que reza desesperadamente o terço
que roga piedosamente mas em vão

a morte chega e abençoa a multidão

25.11.10

absurdos no jardim

plantei absurdos no jardim
para dizeres que sou louco
para me internares mentalmente
em hospício de sentidos
com paredes transparentes
e tectos feitos de céu

no quarto onde me deito
amarrado ao pensamento
faço comboios de estrelas
que circulam devagar
em carris quase inventados.
passagens de nível com guarda
sorriem sempre p'ra mim
acenando utopias
em bandeirolas vermelhas
como absurdos que crescem
pela noite, no jardim

os comboios derreados
seguem carregados pr'a lua
onde deixam para ti
(porque dizes que sou louco)
os absurdos colhidos
mentalmente, em silêncio
no início do poema
quando, não sei porquê
falei tão ternamente
de um hipotético jardim

21.11.10

desenho-te

desenho-te os contornos
com um lápis inventado
deixo pó de carvão a morenar-te a pele
como se o verão chegasse antes do tempo
deixo, os teus olhos escuros bem abertos
e um jeito de menina endiabrada, espalhado pelo corpo.
fixo brincos, como estrelas, nas orelhas
e anéis de saturno, ficam a girar nos teus dedos
num movimento que me entontece a vontade.
os lábios, negros, num luto que me parece eterno
querem beijos, sorriem com pingos de tinta preta
que te borratam a pele e antecipam a noite
a abraçar-te com cuidado.
desenho-te os contornos
em linhas de cor espessa que te envolvem em novelos
despidos de preconceitos
tenho assim, o esboço do teu corpo
guardado na moldura dos meus olhos
que, quando adormecido, apresento
na exposição dos meus sonhos


15.11.10

de repente

e de repente o ar tornou-se frio
gelando cada molécula de oxigénio que o povoa
e de repente engulo grãos de gelo
que deslizam ao som do respirar
cravando-se como alfinetes frios, na alma que adormece
assim, e de repente, as conversas ficam orfãs, sem destinatário
esbarram nas paredes que me cercam
escoam na chuva que se perde
escorrida na janela do meu quarto
sabes, o ar tornou-se frio
e tomou conta do meu corpo
como se fosse a morte a chegar
como se fosse um barco a partir
deixando na maré, a espuma do teu cheiro
e de repente o ar tornou-se frio
fechando meus olhos fartos de sonhar


11.11.10

o tempo




o tempo esfomeado
devora-nos
o tempo desencontrado
consome-nos
o tempo atrasado
distrai-nos
o tempo disfarçado
enerva-nos
o tempo atormentado
envelhece-nos
o tempo esgotado, cansa-nos
e nós, sem tempo pr'o tempo
partimos
desistimos
cegamos
deixamos o tempo confuso
deixamos o tempo parado
morremo-nos como os segundos
que morrem nos braços do tempo

28.10.10

anda beber-me

anda beber-me em tragos

propositadamente pequenos

a água que tenho na boca

são os desejos serenos

deixados pelas palavras

que às vezes tu me dizes

que às vezes tu me escreves

em post-it(s) obscenos


engole-me a alma e o corpo

digere bem devagar

tudo o que tenho em segredo

tudo o que guardo, a medo

anda, vem docemente roubar


leva-me o cheiro da pele

que pões a escorrer no teu corpo

leva-me as marcas dos dedos

as carícias digitais

prolongadas em preguiças

pelos amores matinais


anda beber-me, embebeda-te

com as fomes que eu tenho

mata a sede que tu trazes

sorve as saudades que são

milhares de gotas salgadas

lágrimas de mar revoltadas

que afundam o coração

21.10.10

deixo-te

deixo-te entrar só por hoje

deixo que me surpreendas

que me roubes, que me tenhas

que me explores as entranhas

deixo hoje que me prendas


deixo-te lamber a alma

estremecida contigo

misto de medo e de frio

que penetra em castigo

por frincha do pensamento


deixo que me incomodes

que ocupes o meu sono

que me acordes quando durmo

que me agúes em suores

quando iludes o Outono


deixo espaço para ti

deixo lugar só por hoje

quero que uses torturas

quero que faças sevícias

enche-me com tuas malícias

mostra tua crueldade


saudade, vou te matar

esmago-te com um abraço

transbordando encantamento

hoje deixo-te entrar

só para te poder dar

uma morte por um tempo

espelhos (para Faraj)


os espelhos têm dentro
os meus fantasmas
acordados, passeiam-se no vazio do reflexo
quando a minha cara não está
por vezes, os fantasmas saltam de face
trocam de lado, passam para cá
e entram no meu corpo
mordiscam-me a carne por dentro
aceleram o sangue morto
que estoura em golfadas, o coração
os espelhos riem-se livres
com brilhos e felizes
olhando para o meu corpo, já no chão
estendido abruptamente
em lençol de solidão
miram-se nele e vingam-se
arranjam os cabelos com dedos imaginados
sorrindo como gigolôs passados
e ares de falsos apaixonados
depois, convencidos e vaidosos
deitam-se nus e frios
com brutidão
deitam-se sujos e apagados
deitam-se ensonados
sem qualquer reflexão

15.10.10

resgate

resgato um a um
os meus sentimentos perdidos
soterrados no meu ser
desesperados e poucos
foram definhando em magrezas
de esperanças e vontades

em operação delicada
trago-os à superfície da pele
trago-os à boca da minha boca
trago-os à luz que não existe
nas ribaltas desta vida
trago-os, às palmas das minhas mãos
trago-os em absolvição de pecados
duma luta fratricida

em operação delicada
planeada
demorada
arriscada
com a morte sempre à espreita
foram chegando confusos
cegos pela escuridão da alma
esgotados da difícil caminhada

depois, libertos, fugiram
abraçados entre si
os meus sentimentos fugidos
escondem-se desabridos
mas andam algures por aí


13.10.10

tomar, variações de conjugação

tomo café numa praia
desenhada num papel
porque mar, aqui não há
fiz do açúcar areia
e da colher, uma pá

tomo um chá em pensamento
imagino, de canela
enquanto o teu sol se põe
no parapeito da vida
perto da minha janela

tomo um banho de saudades
liquefeitas nos meus olhos
faço espuma com sorrisos
que se escorrem imprecisos
pela pele em sentinela

tomo duche dos aromas
que engendro serem teus
fico respirando cheiros
tornando-os verdadeiros
fazendo-os perfumes meus

adormeço com cansaços
dum dia de embaraços
e sonho, sonho contigo
tomando-te devagarinho
como onda, nos meus braços

10.10.10

jantar

ao jantar
serviste-me com a sopa
sorrisos prometedores
ares de mulher convencida
com laivos de atrevida
colheradas de conversa
desinteressante, banal
vinho branco disfarçado
em goles de gargalhadas
as tuas mãos alheadas
numa toalha normal

depois, um prato escolhido
partilhado por lembranças
que foi sendo arrefecido
pelas palavras sem sal
ditas, dispersas, sem tacto
estilhaçaram-se os copos
empenaram-se os talheres
que em retirada estratégica
deixaram-se cair ao chão
como migalhas de pão
ou restos de coração
partido em mil pedaços

a sobremesa já fria
(tarte quente de maça)
veio tarde, sem magia
como a tua invernia
que puseste com mestria
naquela mesa fatal
onde o jantar foi servido
num restaurante esquecido
numa toalha normal

não houve café no fim
sobraram restos de mim
em gorjeta mal contada

7.10.10

desassossego de Outono


observo a chegada do Outono
perdido entre as ruas da cidade
parece visitante forasteiro
que encontra estranhamente encurraladas
restos de flores azuis, num canteiro
morrendo devagar arrepiadas
e um frio implacável e certeiro
que lambe as pessoas abrigadas
nas paragens de vidas rejeitadas

as paredes ainda quentes arrefecem
dos beijos escorridos do Verão
e as árvores escondidas já se despem
preparando orgias imaginadas
próprias de principio de estacão

suas roupas amarelas e usadas
deslizam em vento batido de norte
como soprado, ritmado e forte
por penas que moram no coração

eu as observo, enfeitiçado
mergulhando meu olhar pela janela
do café onde em desassossego
leio Pessoa e saboreio a mensagem
bebida num chá quente de canela

2.10.10

(des)esperando por ti


ao fim-de-semana é assim
(des)espero por ti
ao saber que a demora é eterna
e o tempo não quer parar
pr’a teres tempo de chegar
(des)esperando, aos pedaços
procuro os cantos da casa
onde me fico parado
velando as horas mortas
em enterros repetidos
ao fim-de-semana é assim
as mãos vasculham memórias
coladas nos objectos
que se pousam em prateleiras de saudade
verdade
(des)espero mesmo por ti
hoje mesmo, eu senti
o resto do teu perfume
na gaveta que me abriste
do lado esquerdo do peito
sem jeito
desfeito
(des)espero com o vazio
fico morrendo de frio
que a noite sempre me traz

30.9.10

derradeiro grito

vamo-nos desiludindo pouco a pouco
vamos perdendo a luz, o corpo e a alma
vamos rastejando já sem calma
na vida transformada em cilada
vamos comendo lama, à sobremesa
e bebendo a simpatia inquinada
dos seres que nos sobrevoam pela calada

vamos dormindo em cama feita
por inimigos com sorrisos falseados
vamos acordando atordoados
com mentiras que nos trazem madrugadas
vamos engolindo elefantes
com dentes que trespassam confiantes
as entranhas dos corpos já doentes
que jazem em esperanças enganadas

vamos nadando em rio negro
com margens apinhadas de chacais
deixando-nos arrastar pelos caudais
até ao mar profundo e infinito

vamo-nos afundando devagar
sem força para poder soltar
um único e derradeiro grito

29.9.10

linha branca

uma linha contínua, branca, sempre molhada
segue comigo em viagem
vem acorrentada à janela
por onde corre (também ela)
a minha auto-estrada

avança célere, importante e ousada
fazendo-me desagradável companhia
que me deixa em profunda agonia
e a mente em velocidade alucinada.
são imagens recusadas, mas que passam
e trepassam lancinantes alma minha
trazidas sem licença pela linha
contínua, branca, sempre molhada
por chuva de Outono, acinzentada
que aqui vai caindo delicada

na linha, um desenho atormentado
das perdas que existem nesta vida
as que náo conseguiram despedia
e habitam teimosamente o passado

26.9.10

às vezes é assim

às vezes é assim
as palavras escondem-se
em complicados becos de memória
e permanecem escuras como a noite
sem as podermos alcançar
às vezes, lá as apanho
trago-as à força
amarro-as, umas atrás das outras
em filas de semânticos degredos
em busca do poema entendível
às vezes, as palavras
condenam o poeta à forca
chegam ao papel
e em passe de magia
branqueiam-se numa alvura angelical
às vezes, o poema
é uma simples folha branca de papel



23.9.10

outonos e primaveras

foto: Pedro Sacadura (www.olhares.com)

recolho outonos p’ra ti
em pedaços, em tristezas, em amarelos pequenos
em linhas de sol mortiço
pintadas em céu mestiço
de azul e de cinzento
lamento
teu gosto assim
eu cá quero p'ra mim
primaveras coloridas, divertidas, proibidas
cheias de sexo, de amor
cheias de cheiros, inteiros
verdadeiros
em canteiros
que eu planto pr’ra ti
aparece por aqui
dou-te bocados de mim
dou-te arrepios de pele
as rugas da minha face
cabelos que envelhecem
sorrisos que se enternecem
os beijos que te aquecem
e meus dedos que se esquecem
como poder ter os teus

16.9.10

amor, eu volto já

amor, eu volto já
encerro para descanso
da alma que envelhece
e refugio os meus dedos
nos bolsos do meu passado.
amor, vou de viagem
procuro uma outra margem
para transbordar meu corpo
para o deixar como morto
com tempo para apagar
as rugas que o tempo deixa.
misturo-me com o vento
que sopra frio de norte
e rio da minha sorte
em poder assim voar.
amor, eu volto já
deixo mensagem na porta
e as saudades varridas
debaixo de um poema
que escrevi para ti
para quando chegares cá.
eu acho que volto já
a cama tem roupa fresca
e cinzas de incenso novo
espalhadas pela brisa
que se enrolou nos lençois
adormecendo depois.
amor, quando chegares
vais encontrar rastos meus
podes juntar-lhes os teus
e deixá-los em silêncio
abraçados no sofá
porque, amor
eu volto já...


12.9.10

pedaços de amor

saí por aí
apanhando os pedaços de amor
desperdiçado pelas gentes.
meti-os em caixas de cartão
grandes como o coração
e trouxe-os nos bolsos da minha alma
para reciclagem.
depois, em viagem
pela terra onde todos dizem não
enfeitei com eles as esquinas
fiz cartazes e colei-os nas ruínas
dos homens que são de papelão.
num jardim que encontrei
à beira do teu corpo
deixei para ti uma flor
feita com o mais belo pedaço de amor
que tu perdeste
distraída
nas vírgulas da vida
nas ausências de gestos
mergulhados num imenso torpor

7.9.10

relampejar


os relâmpagos desta noite
trazem-me o desenho do teu corpo
bordado a ponto de luz
com costuras perfeitas nos teus dedos

vejo os teus olhos piscando
como as estrelas que se foram apagando
antes da tormenta chegar

o relampejar
traz o teu cheiro diluído pela chuva
abro, em antecipação, a janela
encho a alma de flores
e como se fosse primavera
espero que as venhas apanhar...

6.9.10

gerúndios de vida

4.9.10

desaprendi a voar (voo XX)


guardo as asas que me deste
desaprendi a voar
cativo tu me puseste
preso nas noites sem lua
não vendo os teus olhos brilhar

passeando no abismo
preso nas ausências de mar
a vida está por um fio
a alma corre sem rio
pronta para se afogar
guardo as asas que me deste
pouso o meu corpo na margem
não sigo mais em viagem
desaprendi a voar



nota: poema escrito para projecto conjunto com a escultora Maria Leal da Costa, que em breve será apresentado em Portugal e Lituânia.

3.9.10

preces de voar (voo XIX)

foto de Nuno Manuel P. Martins (www.olhares.com)
sabes, hoje o céu acinzentou-se
e pingou tinta de solidão sobre mim
as asas que tu me deste, entristeceram
fecharam-se, e autistas, deixaram de ouvir
as minhas preces de voar

fiquei-me à janela, sem poder saltar
sem poder sentir o ar
em velocidade louca sobre a face
deixei-me ficar, moribundo
deixando à minha volta, voar o mundo
que por um segundo
trouxe-me até aqui o teu olhar



nota: poema escrito para projecto conjunto com a escultora Maria Leal da Costa, que em breve será apresentado em Portugal e Lituânia.

2.9.10

gaivota


foto: Filipe Silva (www.olhares.com)
espero sempre à janela
que tu chegues a voar
vens sempre na primavera
com as asas muito cheias
de gotas salgadas pelo mar
trazes sorrisos de sol
trazes cheiros das distâncias
p’ra matar minhas saudades
inundá-las de fragrâncias
roubadas da terra ao lavrar
trazes cores nas tuas penas
e quantidades pequenas
de desejos de voltar

espero por ti à janela
espraiando o meu olhar
no azul do oceano
que sou capaz de inventar
espero que chegues gaivota
com vontade de ficar
e pouses nesta ilhota
que encontrei para morar



nota: poema escrito para projecto conjunto com a escultora Maria Leal da Costa, que em breve será apresentado em Portugal e Lituânia.

1.9.10

destino - Porto

31.8.10

vício de ti


30.8.10

asas negras


escultura de Maria Leal da Costa

quero as tuas asas negras
que trazes dentro de ti
quero roubar-te o que sentes
e dizer-te o que senti
com elas voo por dentro
da alma que quase perdes
vou ao encontro das luzes
que tu nos teus olhos acendes

quero as tuas asas negras
rasgá-las em mil pedaços
as penas, pedir ao vento
que as leve dos teus braços
ser o teu anjo da guarda
com as asas em papel
onde pintas para mim
os teus medos a pincel

nota: poema escrito para projecto conjunto com a escultora Maria Leal da Costa, que em breve será apresentado em Portugal e Lituânia.

28.8.10

chegou

27.8.10

em Vilnius, chove!

quadro de Vidmantas Jazauskas
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em Vilnius, chove!
pintam-se gotas nas namoradas
que correm lestas em saltos altos
deixando saias esvoaçadas
e homens velhos em sobressaltos

em Vilnius chove!
lavam-se as caras empoeiradas
das casas velhas e sorridentes
enquanto as ruas aperaltadas
contam histórias por entre dentes

em Vilnus chove!
por entre luzes quase apagadas
fantasmas pairam pela cidade
e amedrontam mulheres casadas
que mostram sua fragilidade

em Vilnius chove!
ficam-se cheiros indefinidos
por entre as águas em correria
são gestos frios e atrevidos
danças de inverno, em romaria

em Vilnius chove!
beijam-se bocas apaixonadas
trocam-se amores quase perdidos
e nas esquinas arredondadas
faltam palavras, escorrem gemidos

em Vilnius chove!
em Vilnius chove!
em Vilnius chove!
e eu sem abrigo...

26.8.10

bandos (voo XIII)


escultura de Maria Leal da Costa
bandos são os meus dedos
voando sobre o teu corpo
procurando lugar certo
para carícias pousar
depois
bandos de beijos, arribam
como água no deserto
e com a boca por perto
com sede de te beijar
escorrem-se mimos a rodos
que se juntam quase todos
no teu secreto lugar

nota: poema escrito para projecto conjunto com a escultora Maria Leal da Costa, que em breve será apresentado em Portugal e Lituânia.

voo altivo (voo XII)


escultura de Maria Leal da Costa
voar sereno e altivo
como o de um gavião
traz as asas do meu sonho
arredadas do meu corpo
pousadas com ar tristonho
paradas, em hibernação


nota: poema escrito para projecto conjunto com a escultora Maria Leal da Costa, que em breve será apresentado em Portugal e Lituânia.

25.8.10

voo na tua cintura (voo XI)

escultura de Maria Leal da Costa
voo na tua cintura
com asas de aventura
em tango dançado em Paris
num carrossel de loucura
rodopiando em ternura
com a alma de aprendiz

tenho o corpo em tontura
agarro-me à tua cintura
mulher nua
em Paris
deixas-me a pele em secura
bebo da tua doçura
morro-me assim em bravura
sábado à noite, sem lua
num tango perdido
em Paris


nota: poema escrito para projecto conjunto com a escultora Maria Leal da Costa, que em breve será apresentado em Portugal e Lituânia.

namorados (voo X)

escultura de Maria Leal da Costa

quatro asas
quatro penas
cumpridas em celas pequenas
que existem no coração
são desencontros passados
de fogosos namorados
que voam amedrontados
sobre quatro doces pecados
de amor, em combustão


nota: poema escrito para projecto conjunto com a escultora Maria Leal da Costa, que em breve será apresentado em Portugal e Lituânia.

22.8.10

anoiteço devagar



hoje anoiteço nos teus braços
esperando pela lua
que quase nua
olha-se nos teus olhos
ficando envergonhada a brilhar
hoje vou respirar
a brisa que tu me dás nos teus lábios
em bocadinhos de beijos
em pedacinhos de amor
soprados às escondidas
temperando este calor
hoje, vou arrepiar-me com as palavras
que tu tens em pensamento
hoje, as estrelas (porque sou céu)
escorrem-se doces pelo vento
refrescando os meus sentidos
desmaiados num momento
hoje, por uma janela em quadrado
entrou um poema assinado
onde encontrei em três versos
o teu sorriso em pecado
hoje, encarcerado
numa fotografia tua
anoiteço devagar
esperando pela lua

21.8.10

singularidades


singularidades
são as linhas do destino
perdidas da tua mão
um gancho do teu cabelo
prendendo riscos no chão
o teu sorriso enlevado
à cabeceira da cama
esperando por um beijo
que o acenda como chama
o chá preto, não bebido
que entornaste n’almofada
fruto de sonho agitado
possuindo a madrugada

singularidades
são a tua roupa espalhada
compondo no quarto uma tela
o bater do coração
como chuva na janela
são as preguiças contidas
no teu corpo como cela
são as imagens finais
esquiçadas na memória
desgarradas de palavras
e procurando uma história

19.8.10

lágrimas


lágrimas, são pedacinhos de alma que escorrem
quando está escuro
são sentidos confundidos feridos pela saudade
são gotículas de orvalho condensadas
na superfície gelada das palavras que tu dizes
ou que não dizes
deixando que o inverno tome conta do meu peito
percorrem rugas de expressão triste
em enchentes transbordantes de lembranças
e inundam a face sedenta de um sorriso
lágrimas são de sal
sabem a sal, quando as provo nos teus lábios
são de mar, trazidas por vento forte na alma da maresia
são pérolas alinhadas em enfeites de catarse
e são por hoje a minha companhia

15.8.10

fado de um tango só



dancei o fado contigo
deixei o tango em sentido
às portas da minha alma
assobiando, atrevido
imitando, destemido
as cordas duma guitarra

cantei o fado contigo
até se apagar a lua
o tango, como castigo
fez do sol um condenado
roubando o brilho dourado
das pedras da minha rua

ouvi o fado contigo
numa Lisboa a chorar
desaguando no Tejo
pedindo pr´o tango cantar
tocar guitarra e dançar
como era seu desejo

dancei tango com um fado
de um modo apaixonado
que Lisboa, convenceu
cantei um fado com tango
deixei Gardel conquistado
por este pecado meu

roubei-te uma flor

livro "rio que corre indiferente" - pag 30




11.8.10

tremo

foto: Hilton Pozza (www.olhares.com)

tremo
com estrondo d’ árvore
a cair na floresta
tremo
com o passar do comboio
numa estação já deserta
tremo
com o frio glaciar
que a morte tem no olhar
e com as palavras desfeitas
pousadas no teu chorar
tremo
com um poema abatido
a tiro de ilusão
tremo
com a alma calada
bebendo ensanguentada
as lágrimas do coração
tremo
com o ruído escondido
do silêncio caminhando
deixando marcas no chão
tremo quando está escuro
e abraço a solidão
tremo quando fecho os olhos
na praia dos pensamentos
esperando inseguro
pelo mar dos sentimentos

8.8.10

os silêncios vão chegando devagar

foto: raquel (www.olhares.com)

os silêncios vão chegando devagar
como invernos de ausências, se abeirando
são despojos perfumados esquecidos
são cigalhos dos carinhos se queimando
nos monólogos que ecoam, enlouquecidos

os silêncios são canções que se perderam
nas sete notas de vida
são flores que sorrindo definharam
com sedes sequiosas de alguém
são os ecos de alguns voos solitários
movimentos sem trajectos temerários
são cuspidelas de tempo, em desdém

são também, pó de conversa acumulado
varrido em noites longas, apagadas
fragmentos de palavras adocicadas
sílabas em fatias já cortadas
relógios com horas desencontradas
achados nos enredos das madrugadas

os silêncios vão saindo das gavetas
outrora repletas de saudades
são as portas que se abrem sem gemer
são paredes que arranham sem doer
e a alma que se está a transformar
num silêncio que me chega devagar

anoiteço devagar


foto: Mario (www.olhares.com)

hoje anoiteço nos teus braços
esperando pela lua
que quase nua
olha-se nos teus olhos
ficando envergonhada a brilhar
hoje vou respirar
a brisa que tu me dás nos teus lábios
em bocadinhos de beijos
em pedacinhos de amor
soprados às escondidas
temperando este calor
hoje, vou arrepiar-me com as palavras
que tu tens em pensamento
hoje, as estrelas (porque sou céu)
escorrem-se doces pelo vento
refrescando os meus sentidos
desmaiados num momento
hoje, por uma janela em quadrado
entrou um poema assinado
onde encontrei em três versos
o teu sorriso em pecado
hoje, encarcerado
numa fotografia tua
anoiteço devagar
esperando pela lua

29.7.10

janela aberta


com a janela assim aberta
o cheiro da chuva quente
mistura-se com o teu
cheiro de mulher suada
desnudada
cansada do amor desfeito
por dedos deslizantes
e boca salivada
perdida nos teus seios abundantes

com a janela assim aberta
uma brisa propositadamente molhada
vem lamber-te a pele
adocicada
por beijos agonizantes
morrendo em instantes
como se fossem quase tudo
quase nada

com a janela assim aberta
o escuro ainda húmido
rasteja pela madrugada
cobre-te em lençol de seda
apagada
seca-te o corpo, a pele, a alma
e te adormece sobre a neblina
que também te ilumina
com luz aparente e calma

eu
te observo assim liberta
eu
te procuro em descoberta
eu
te suplico, e rezo, e peço
que deixes assim p’ra mim
a tua janela aberta

18.7.10

mudar o sentido do vento


gostava de parar o tempo
mudar o sentido do vento
para ter teu cheiro aqui
gostava de fechar os olhos
fingir ser pássaro tonto
perder-me do bando e de pronto
voar, pousar em ti
gostava de achar maré
nadar e perder o pé
no fundo da alma tua
sussurrar ao teu ouvido
palavras que tenho escondido
na sombra da minha lua
gostava de adormecer
sempre que me apetecer
com os sonhos que tu tens
deixá-los em mim reféns
sempre que anoitecer
para eu não te perder
depois, se um dia acordar
deste poema sonhado
gostava de te beijar
gostava de me afundar
nos teus braços, desvelado

13.7.10

saí de mim


saí de mim, para te ver adormecer
voei pousado no sorriso teu que imaginei
e toquei nas tuas mãos ainda acordadas
deitadas com os dedos a brincar
contando o tempo que se esgota devagar
saí de mim, e vi a tua pele serena
suspirada pela brisa morna, amena
que trouxe no meu inexistente respirar
saí de mim, e vi o teu corpo estremecido
por arrepio quase perdido
que teimou morar no teu acariciar
saí de mim, e os teus olhos brilharam
como as estrelas que te espreitaram
com ordem minha de te abraçar
com beijos, com desejos, com charadas
de palavras que foram ensinadas
a falar para te fazer sonhar
saí de mim e vim para te buscar

29.6.10

lençol de linho



estendo o lençol onde me deito sozinho
conto os sonhos que não tive e os dedos que retive
em sudação
inundando a minha pele sedenta de um carinho
conto os sorrisos deitados a meu lado
guiando em contramão
e os perfumes que um dia falaram comigo
em evaporação
estendo o meu corpo em solidão
como castigo
como barco vazio onde o capitão
sentado no nó da vida
não tem qualquer saída
nem cais de amarração
fixo-me com olhos de alma
espreito-me com pele arrepiada
de me ver assim, feito nada
mesquinho
em lençol que presumo ser de linho
porque o branco me parece daqui
diluído
parido
detido
no uso dos dias que não passam
eu, pareço-me talvez diferente
desistente
descrente
dependente
de um olhar que me toque, de uma mão
que me agarre nesta noite que existe sem razão

27.6.10

destino - Porto

foto: Nijmegen (Holanda)


encontro sinais de Porto na cidade
envolvidos em palavras desenhadas
deixando pelo olhar uma saudade
de ter estreitas ruas desarrumadas
nas ruas que aqui percorro ordenadas

em cansaços e calores alucinados
vejo os Rebelos do Douro apinhados
de nadas muito cheios de vontades
navegam nas paredes que observo
pintadas como rio que se corre
nas veias dum alguém que foi seu servo

a Foz é já ali, depois da esquina
da rua Escura que já se ilumina
com passos imaginados de pessoas.
o sonho vai partir do aeroporto
em voo de avião sobrelotado
na mão um bilhete amarrotado
onde se pode ler: destino - Porto

21.6.10

poema roubado nos teus lábios


tens algo que fascina os sentidos
e me deixa levemente adormecido
nos sonhos demorados que me trazes
tens algo, que povoa o meu destino
e que hoje eu desenho por instinto
no papel reciclado por teus dedos

deixo os versos riscados em cegueira
envolver as marcas que me sopras
e os sorrisos semeados com arado
agarrados por meus olhos à distância

deixo as palavras roubadas
de surpresa à saída dos teus lábios
tingirem o ar que eu respiro
deixo a alma abraçar a liberdade
voando rasante e em saudade
na brisa de ternura que lhe chega

inspiro devagar tua presença
que bebo em tragos prolongados
deixando que me encontres nos pedaços
das palavras que por ti agora escrevo

20.6.10

reflexo

foto: Marília Henriques (www.olhares.com)


tenho cada cm da tua pele
desenhado em cada cm do meu corpo
tenho a tua boca
plantada na memória
e o teu sorriso pintado
na história que escrevo solitário
tenho cheiros semeados
tenho os teus dedos marcados
em poemas espalhados pelo tempo que nos lambe
tenho palavras tuas nas paredes
ecos esmagados escorridos
dos gemidos que impedes
e dos gritos que se morrem esvaídos

tenho no espelho a tua imagem
gravada em reflexo
e os teus olhos acesos
no espaço complexo
onde dançam indefesos
os meus pensamentos não coesos
ao som de uma música sem nexo

17.6.10

labirinto


voltei ao labirinto para me perder
quem sabe para viver
para permanecer em estado louco
ou em estado liquido (pouco)
por cuidadoso descongelamento
do pensamento
entorno-o em cinzento
em gotas de desinteligência
sobre as sebes que limitam a consciência
labirinto-me assim em inocência
desmembrado
desregulado
no tempo, vontade e espaço
reduzido a corredores infinitos
em círculos, semicírculos, circunscritos
onde caminho em passo acelerado.
quero e não quero encontrar o lado
onde possa ser exorcizado
onde possa ser excomungado
onde possa ser iluminado
e passar para o mundo dos espíritos