26.2.12

a alienação do corpo



em liquidação total
encontro-me assim…
em apuramento final
a vender barato a alma
a saldar a vida
a alienar o corpo, num site de promoções

aos dez primeiros
são oferecidas condições
para me terem dividido em dez pedaços
poderão levar surpresas
uns olhos que vendo mal
não enxergam o sinal
do declinar dos tempos
mãos a balançar
entre um adeus e um abraço
boca a bocejar
com as mesmices das vidas
ladras da eternidade
a pele em arrepio de verdade
os dedos com defeitos quase perfeitos
de tocar
o peito a explodir, com tanta coisa lá dentro
e as pernas a tremer
como árvores com medo do vento
que as façam esquecer
que há também primavera
os lábios ansiosos, em espera
de beijos molhados
sabores ousados
de batons encarnados
os cabelos com réstias de neve
de todos os invernos passados
e o coração
arrancado por amores adocicados
não negoceio
deixo-o a bater
à porta do teu coração

22.2.12

operações do amor





raciocínios matemáticos em colisão
com uma vontade enorme
de encontrar racionalidade
nas operações do amor

deixo a soma (+) a reger-se por regras de fusão
mesmo de reunião
principalmente quando está frio
e a alma gelada
(pela ausência de exercícios de álgebra complicada)
adormece parada
procurando uma mão
que a agarre ao corpo
há muito perdido
em equações complicadas de solidão

com a divisão (/)
desenvolvo uma relação estratégica
de não agressão
fica para ali sozinha, num canto da memória
independente
com a sua bandeira hasteada
ainda não identificada
de uma só cor...
é uma divisão arrumada
com espaço suficiente para viver
obrigatoriamente
longe do coração

quem subtrai
trai
rouba
e cai
na tentação de uma subtracção (-)
pouco adequada às operações do amor
e com dor
a conta inversa observa
apaixonada pelo oposto
e em desgosto
desespera
e espera
desespera
e espera
pelo nada, pelo zero, pela anulação…

raciocínios matemáticos
em colisão
esperando ansiosamente
a chegada da multiplicação (x)

raciocínios matemáticos
em colisão
esperando religiosamente
pela libertação

NOTA: Desafio lançado pelo Clube de Matemática ao qual respondi com um gosto muito especial atendendo à minha formação mais virada para as ciências do que para as letras. Neste exercício mensal, pretendo, de alguma forma, ''casar'' a Matemática com a Poesia... vamos ver no que dá...

19.2.12

a cuidar de ti

imaginei um céu
onde eu, morto, cuido de ti
dizem que sou o teu anjo da guarda
mas não acredito
só sei que trouxe comigo
a tua alma
para poderes esta noite
ter um abrigo
onde o teu corpo cansado, descanse
e o teu sorriso
sobreviva, apesar da tempestade

no céu onde agora estou
tenho anjos, iguais aos que me disseste
são sete, de um branco muito celeste
e cantam em volta de Orion
aquela constelação
que tão longe, desenhaste
com um beijo que me deste

imaginei-me morto, no céu
com os anjos que inventei
e as estrelas, que se apressaram a mostrar
o quanto gostam de ti
são quatro, de um brilho muito mel
os seus nomes
Betelgeuse, Saiph, Bellatrix e Rigel
anotei numa lua de papel
que te vou oferecer
quando acordares
de surpresa nos meus braços

descansa
estou morto por uma noite,
estou no céu, estou aqui
com os olhos bem abertos
e os sentidos despertos
para embalar os teus sonhos
e assim cuidar de ti...

(versão polaca)

18.2.12

até ao amanhecer



tenho, uma meia lua, a espreitar à janela
e todo o tempo do mundo repousando à tua espera
tenho muitas estrelas verdes, a espreguiçar-se nos céus
e os teus olhos brilhando, dessa cor, nos olhos meus
tenho flocos de neve bailando leves ao vento
e o teu corpo inteiro a despir meu pensamento
tenho uma rua vazia a correr sob a varanda
e todos os dedos teus, no meu cabelo em demanda
tenho as paredes do quarto a dizer os meus segredos
e os teus pés já descalços em cursos ágeis e ledos
tenho kanklės* a vibrar no meu país adotado
e o teu sorriso ligeiro a passear no pecado
tenho os olhos fixados no espelho onde moras
e o perfume da pele trocando a ordem das horas
tenho chá, tenho poemas, tenho magias tremendas
e a outra metade da lua deitada desde as calendas
o alarme está ligado para não adormecer
os sentidos estão libertos e não desejam morrer
as minhas mãos estão suadas
as portas estão fechadas
as luzes foram roubadas
para ficares por aqui, esta noite, sobre o meu querer
as cores são delicadas
as quietudes, caladas
as bruxas, enfeitiçadas
até ao amanhecer

* instrumento musical tradicional lituano

10.2.12

apneia



abro e fecho as mãos
e o coração
abro e fecho a noite
com explosões de interrogações negras
que ruidosamente escorrem quentes
pelos neurónios...
massa cinzenta
em descoloração fatal
proporcional
à solidão que me invade
interrogação (?) explosão (!!!) interrogação (?) explosão(!!!) interrog...
tortura num quarto-prisão
cama ausente de função
e chão frio
como o corpo que se entristece

abro e fecho os olhos
e o coração
abro e fecho a alma
com petardos de interrogações farpadas
interrogação (?) detonação (!!!) interrogação (?) detonação (!!!) interro...
que ensanguentam o peito
e deixam sem respirar a mente
oh prolongada apneia
num suicídio do pensar
oh asfixia controlada
nesta madrugada
do complicado verbo amar

abro e fecho a boca
e engulo o coração

5.2.12

talvez não estejas sozinha...


talvez não estejas sozinha
porque a noite está tão linda  
e o frio que hoje existe
não apagou o luar
talvez não estejas sozinha
porque o chá perto da cama
não arrefece depressa
fez por ti uma promessa
continua a fumegar
talvez não estejas sozinha
porque os teus dedos conversam
soltam as palavras simples
que lhes ensinei a falar
talvez não estejas sozinha
porque o frio que repousa
no vidro da tua janela
tem um rasto quente e baço
d’alguém que sopra o teu nome
com lábios feitos abraço
prontos para te beijar
talvez não estejas sozinha
porque os teus olhos cerrados
brilham tanto como estrelas
não mostram ponta de medos
por detrás dos céus fechados
talvez não estejas sozinha
porque trauteias na mente
uma canção de embalar
repousando calmamente
até o teu sono chegar
talvez não estejas sozinha
porque tens uns quantos sonhos
que voam sem asas, no quarto
esperam indicação tua
um sinal ou uma pista
uma escolha onde pousar
talvez não estejas sozinha
tens um livro de magia
com páginas por escrever
espera aquela mezinha
com pernas de aranha preta
e asas de borboleta
que tu teimas em esconder

talvez não estejas sozinha
até eu poder chegar…

3.2.12

o atentado



hoje planeou-se um atentado
um desvio de avião
que infinitamente voasse no paraíso
situado pertinho do céu
e não aterrasse no inferno das vidas
plantadas em terra branca, como as nuvens
espumas que apetecem provar
em mergulhos suicidas, pelas portas de emergência

por momentos inventaram-se armas mortíferas
com frascos de perfume de coco chanel
incendiados por cigarros sem fumo
daqueles que estupidamente se passeiam
em mãos de assistentes de bordo
com unhas incendiadas de vermelho
ora, não havendo fumo
o verbo fumar, obrigatoriamente se extinguiu
e decretou-se a sua substituição erótica pelo chupar
verbo não poluente que se inventou para ser usado neste avião

o atentado acabou por se concretizar
com bombardeamento de palavras belas, meio loucas
correu bem
morreram dezenas de preconceitos
e o amor foi salvo “in extremis’’
apesar da aterragem acidentada
numa pista cheia de destroços de afetos
que rastejavam moribundos na pista fria de Vilnius