31.5.11

emudecera, o sino




Emudecera
Empoleirado na torre
De uma igreja acabada
Agora fechada
Por ausência de cordeiros
De Deus
Que sem dizerem adeus
Fugiram pela calada.
Partiram os pecadores
Deixando rasto de orgia
Na pequena sacristia
Do templo que fora sagrado.
Esperava reservado
Ssem horas para contar
Sem gente para acordar
Sem badaladas pr'a dar
Aos seguidores do Senhor
Que iam em romaria
Nas procissões de Maria
Ou nas noites de Natal.
Emudecera sem dor
Em sono quase letal
Numa noite assombrada
Por uma alma penada
Que lhe traçou o destino
Calando p'ra sempre o sino
Que tinha na minha alma

Sinfonia




Imaginem uma casa
Com mil portas
Afinadas
Abrindo
Fechando
Com mil pessoas passando
Todos os dias

Imaginem uma casa
Com mil portas
Não usadas
Completamente paradas
Não abrindo
Não fechado
Acumulando rangeres
Em dobradiças tolhidas
Retidas
Numa preisão de mil anos

Imaginem uma casa
Com mil portas
Perdida no doce afago do tempo
Invadida por mil crianças travessas
Em correrias
Em malfeitorias
Abrindo
Fechando
As mil portas
Que gemem
Usando maneiras diversas

Imaginem uma casa
Com mil portas
E uma imensa sinfonia

23.5.11

Louco



Quando queria, punha-se louco!

O espelho, de manhã
Via-o a desgrenhar o cabelo
E do café tirava a água
Saboreando colheres de pó
Cantando o noticiário
Lavava-se com uma toalha branca
Que tinha bem desenhado
Um coração encarnado
Secava-se deslizando na banheira
Em tempo ilimitado

Saía de costas de casa
Caminhando acertado
Na direcção oposta ao emprego
E via no muro da esquina
Um coração encarnado
Desbotado
Pelos dias que se deixava ser louco

No céu voavam crianças
Penduradas em balões
Com forma de corações
Por acaso, encarnados
Sorriam-lhe com as orelhas
Diziam adeus com os pés
E ao som de grafonola
Seguiam apaixonados
Tendo destino a escola

Quando queria, punha-se louco!

De passo rouco
Arrastado, um pouco
Encontra no jardim o baloiço
Onde nos dias
Que lhe apetece ser louco
Deixa um coração cheio, grande, apaixonado
A oscilar
Entre o negro e o encarnado

As fases da lua



Como a lua
Tu tens fases
Minguas, devagar
Desaparecendo nos meus dedos assustados
Perdendo luz docemente
Num amanhecer, que por vezes
Se esconde na vontade de sonhar

Às vezes
Enches-te de surpresa
E iluminas assim cheia
A noite que se espalha placidamente
Pelas ruas que eu tenho no meu peito
Tu tens fases
E assim vais em crescendo, em vontades
De brilhar
De ser lua
Ficares no meu céu sempre nua
E eu à janela, estudando astronomia
Deixo a filosofia
Explicar as razões das tuas fases

Pintando a Primavera


Gotas pinceladas, amarelos
Pingando os chãos planos, ao acordar
Os verdes, pouco a pouco vão arribando
Às árvores que se vestem devagar
Os lagos em azuis vão-se aquecendo
Para à noite a lua vir e se banhar

As linhas dos arados são as pautas
Com notas de cegonhas semeadas
Os ventos avisando as chegadas
Com assobios mornos, muito a medo

O céu que já deixou de estar só triste
Surgiu-me bem vestido à janela
Tem barba por fazer de poucos dias
Em tufos de alabastros, sem maneiras
Onde se esconde o sol envergonhado
Sorrindo para mim, em brincadeiras

E nesta estrada que é
Sempre cinzenta
Unindo as estacões
Que são do ano
Vou eu pintando leve, a primavera
Numa cadência quente e repetida
Acomodando na viagem a demora
Dum movimento que tenho em espera
Rondando os 100 km por hora

Mosca inglesa



uma mosca inglesa
apanhou clandestinamente o avião
voou dentro dele, perdida
enquanto ele
voava imponente
não sabendo que outro voo, o dela
existia também

a mosca voava, tonta, despassarada
não entendendo que pousada
podia voar igualmente
cansava-se o pobre insecto
não encontrando dejecto
nem uma janela aberta
que a deixasse liberta
sem voo dentro do voo

a mosca vira-se grega
durante toda a viagem
e embora sendo inglesa
sem saber onde assentava
aterrou em Portugal
teve então voo normal
viu por fora o avião
seu gigantesco irmão
a saborear recatado
dejecto descomunal

18.5.11

Pés descalços


Perdi-me nos teus pés descalços
Delicadamente desnudados
Posando para os meus olhos

Deixei-me enlevar pelos teus dedos
Que em movimentos ritmadamente pequenos
Empurram os segundos do meu tempo
Habitualmente amargo e longo
Hoje, em mel espesso, escorrendo eroticamente
Da cadeira onde os teus pés se pousam

Tentei anotar detalhes
As linhas desenhadas pela graciosidade de uma dança
Em pontas
Adivinhar as marcas por eles deixadas
Numa tela de areias espalhadas
Pela excitação do mar
E deixar-me imaginar
Que podiam ser esculturas ou retratos
Instalações soberbas
Um quadro de pintor famoso
Em exposição permanente
No museu de arte contemporânea do corpo

Mas
São simplesmente os teus pés que aqui tenho
Posando para os meus olhos
Lindos, assim descalços
Em despudorados movimentos
Hipnoticamente lentos
Que fingi serem só para mim

por eu me lembrar de ti...


Acaba de sair o meu novo livro

Poderá ser adquirido em:

16.5.11

Versos de amor



Volto a escrever versos de amor
Agora sem destinatário
Orfãos, sem sentido, sem razão
Que entrego solenemente nos "perdidos e achados"
Como se fossem
Óculos de cego encontrados num banco de jardim
Carteira Chanel de senhora, cheia de rebuçados
Perna de pau de pirata, corroída pelo mar
Um livro meio rasgado
Que dizem ter sido roubado
Do meu ser

Os meus versos são agora livres
Panfletos do concerto de um cantor revolucionário
Espalhados pelo chão ao sabor do vento
Numa cidade vazia
Fria
Na minha rua deserta
Onde certa, mesmo certa
Só a sombra de alguém, mulher
Que vejo da minha janela

Já pensei que pudessem ser para ela
Estes versos de amor escritos como charadas
Com palavras cruzadas
Amarradas
Num corpo perdido sem alma
Em sequestro, em chantagem
Em escrita encriptada
Com nome apagado ou trocado
Por acção propositada

Mas não
Não, não
Os versos não são para ela
Não para aquela donzela
Cuja sombra é tão certa
E vejo todas as noites
Quando me ponho à janela
Volto a escrever versos de amor
Decididamente discretos
Mas como agora, revolucionário
Os versos que escrevo não têm destinatário

5.5.11

para quem não prescinde de flores


Quem não prescinde de flores
Procura pétalas perdidas nos recantos da memória
E recosntrói malmequeres pela manhã
Numa cama de lençois brancos, amarrotados
Nos corpos a secar dependurados
Em cordas de lembrança por curar

Quem não prescinde de flores
Tem vasos adormecidos à janela
Que hibernam esperando a primavera
Colhe sementes nos ventos que chegam do jardim
Espera por germinações que aconteçam
Devagar dentro de mim

Flores que podem ser papéis escritos
Com os poemas malditos
Que me arrependo de escrever
Poemas que se perdem nos meus dedos
E se rasgam quando chega o amanhecer

Flores, flores que não existem nos meus olhos pr'a te dar
Flores renunciadas por mãos que não vivem pr'a tocar
Flores paradas numa vontade de ser mar
Flores do sal precipitado
Num inverno inteiro a chorar