31.10.11

por ti




o silêncio toma conta de mim
roubando-me as palavras
que te queria dizer
o silêncio, comendo-me os restos
as vísceras, os dedos
roubando-me a língua
deixando-me a boca ensanguentada
a escorrer as últimas sílabas
que tingem a cama do tempo
onde me deito
e espero

onde desespero
onde, em silêncio eterno
espero

por ti

23.10.11

a última cena



no exato momento de fechar os olhos
a chuva inundava o meu corpo
submergindo a pele
e afogando os dedos que esboçavam ainda
vontade de viver
aos poucos, afundaram-se os anos
e em segundos de sufoco
os estilhaços da memória
espalharam-se em redor da alma
alumiando-lhe o destino
refletindo os pedaços de amor agonizante
que chegaram outrora a arder no coração
os cães chegaram sem latir
e lamberam as feridas ressequidas do desgosto
homens, todos de negro, limpavam o mijo
dos corvos que voavam em espirais concênticas
imitando furacões com nome de gente
a gente, carregando os ossos do passado
e a carne apodrecida daqueles que nunca quiseram morrer
chorava
aquela chuva ainda morna
que inundava o corpo
e me confortava os farrapos dos sentidos
em luta por sobreviver
Deus pintava a cena
em tela imaculada de luz
sem sofrer

19.10.11

Teorema do Amor em Conjuntos Infinitos

O logaritmo perdeu toda a razão que lhe vinha dos antepassados gregos ao envolver-se com a chaveta, menina solteira vinda de outro planeta onde os números se contam ao contrário.
Perdeu toda a sua base de sustentação e a potência que o caracterizava, foi-se por expoente abaixo.
Fez mil e um malabarismos, caiu em sofismas baratos, mas o amor exponencial, rebentava na sua infinita alma, deixando-lhe o coração ocupado em equação, cuja resolução, sabia ser praticamente impossível.
A chaveta ria, com aquele ar inocente, de garota indecente, colocando um biquinho nos lábios, como que beijando quem passa.
Dentro dela, um grupo quase infinito, elementos estranhos que por vezes se entretinha a colocar em desenhos.
Com conjuntos mais chegados fazia reuniões, e por intercepções sucessivas, achava os elementos comuns, que depois, com ela, passavam noites e noites em escandalosas aventuras matemáticas.
O logaritmo enlouquecia com as brincadeiras da sua apaixonada.
Ela, amuada, virava-lhe costas, e o biquinho que tanto o exponenciava, voltava-o para a direita, deixando o seu pretendente, a contemplar a concavidade vazia do seu corpo.
Pensou mesmo em suicidar-se, mudar de base, renunciar a tabelas, atirar-se para debaixo de um comboio carregado de funções inversas.
E assim se foram afastando em incompatibilidades profundas.
Ele recolhido em estudos avançados, estrela de congressos variados, frequentando mestrados, investigando novas teorias, perdendo as alegrias, ganhando alergias à teoria dos conjuntos desadequados.
Ela, em brincadeiras depravadas, sucessivas, com amigos mais ousados, fazia operações perversas, com raciocínios complicados, até ao dia em que um conjunto vazio lhe apareceu no resultado.
Aí, a chaveta desfez-se em lágrimas, perdeu a graça, envelheceu em processo complexo, ficou como um parêntese desconexo, sem aquele apêndice adjacente que organicamente a fizera tão atraente.
Numa noite desesperada, sentou-se a ver TV.
De Oslo, já madrugada, ele ali estava perfeito, em directo, com ar algo circunspecto, o seu logaritmo perdido, de Nobel agora nas mãos.
Em discurso emotivo, apresenta teorema, em rima, como um poema, defendendo, inovador, o
princípio do amor, nos conjuntos infinitos.



NOTA: Desafio lançado pelo Clube de Matemática ao qual respondi com um gosto muito especial atendendo à minha formação mais virada para as ciências do que para as letras. Neste exercício mensal, pretendo, de alguma forma, ''casar'' a Matemática com a Poesia... vamos ver no que dá...

16.10.11

Barcelona

passei hoje por Barcelona
para te desencontrar
e deixar o teu perfume
pousar na tela de cinema
onde Vicky beija Maria Elena
e Javier se enleia
nas tuas mãos que neste filme
foram minhas
passei hoje por Barcelona
e estava frio
como se fosses o outono a chegar
à minha vida
a primavera do inverno
ou o inferno
onde o meu corpo passará a existir
procurei Dali
encontrei Gaudi
ressuscitado
enamorado de ti
passei hoje por Barcelona
com destino consumado
para te libertar
das palavras que já não consegues dizer
passei hoje por Barcelona
para de ti
finalmente me perder

nota: escrito depois de ver o filme Vicky, Cristina, Barcelona de Woody Allen

10.10.11

temporariamente



temporariamente
a brisa entrou pela janela do meu quarto
soprou os papéis que tinha na alma
baralhando a ordem e o tempo da vida
temporariamente
a casa encheu-se de imagens tridimensionais
com eixos quase reais
que trouxeram cheiros, medos e ruídos
temporariamente
ponho a mesa
e encho os copos com sumo de laranja
sem ninguém para o beber
temporariamente
engano vontades com sonhos impossíveis
abro e fecho portas como se houvesse gente a passar
sorrio com palavras que ecoam pela casa
sem bocas para as dizer
temporariamente
acendo incensos que nem chegam a arder
imagino perfumes exóticos
ainda não inventados, com as cinzas a gemer
temporariamente
conto uma história para te adormecer
num quarto que nem sequer existe
numa cadeira que balança
no cabo que atravessa a minha memória
eu, equilibrista, sem rede onde cair
temporariamente
invento princesas e dragões
invento noites com as horas todas de luz
invento passos de pés muito belos
invento flores
invento cores
invento gargalhadas enfeitiçadas
por bruxas que se fingem apaixonadas
temporariamente
invento-me aí
aqui

madrugada



cheiros de piano que toca sozinho
com teclas dormindo um sono divino
as cordas de mel de um violino
gemidos suaves pingando o destino
a luz dos teus dedos mostrando o caminho
sorrisos que escorrem em som cristalino
palavras que escreves com um só olhar
e a lua sem brilho, num céu a esperar
a rua vazia por ser madrugada
a casa cinzenta, desapaixonada
teu corpo dançando em palco de fogo
teus pés apagando sinais da estrada
as mãos vão tremendo em terríveis danças
por eu lhes trazer as tuas lembranças
o frio pousado na cama deserta
e a alma voando para parte incerta

de olhos fechados para não ver nada
aguardo inquieto a tua chegada

(versão polaca)

7.10.11

As contas todas


Fizeram-se as contas todas!
Multiplicaram-se amores, somaram-se as flores sobrantes da primavera e
queimaram-se folhagens, bastantes, dos outonos delirantes que enganavam invernos adormecidos,
quase perdidos, a contar os longos meses de Dezembro.
Depois, afagou-se o coração, para apagar os frios, com café cheio de beijos mascavados, doces
pecados, resultados de complicadas operações de divisão.
Subtraíram-se suavemente as nuvens que escondiam a lua com cortinas grandes, densas, tricotadas em algodão, e assim, a operação, ficou completamente clara, iluminada, certa, perfeita, isenta
de prova real, com céu limpo a confirmar o resultado final.
Fizeram-se as contas todas, naquela escola.
Ao fim do dia, a poesia meteu os lápis e cadernos na sacola e saiu.
Nunca mais ninguém a viu. Consta que por ousadia, foi estudar algoritmia,no Egipto, na universidade de Alexandria… 


NOTA: Desafio lançado pelo Clube de Matemática ao qual respondi com um gosto muito especial atendendo à minha formação mais virada para as ciências do que para as letras. Neste exercício mensal, pretendo, de alguma forma, ''casar'' a Matemática com a Poesia... vamos ver no que dá...

Poemática



E a matemática pediu namoro à poesia, mostrando-lhe todas as suas qualidades que passavam por sinais aritméticos de riqueza, campos cheios de raízes quadradas e um coração infinito, onde cabiam todos os números perfeitos, como convém a quem se quer apaixonar.
Ela, a poesia, achou-lhe graça.
Encontrou-lhe alguma métrica e deixou-se deslizar em hipérboles que sendo linguísticas a levaram a exageros que nem o teorema de Pitágoras conseguira resolver.
As incógnitas desta relação eram muitas, atendendo às suas personalidades ímpares, com números primos à mistura.
Foram vivendo numa matriz de entendimento construída por rimas pouco lógicas e amores em fracções de denominador comum que sustentavam médias de paixão numa POEMÁTICA difícil de teorizar…


NOTA: Desafio lançado pelo Clube de Matemática ao qual respondi com um gosto muito especial atendendo à minha formação mais virada para as ciências do que para as letras. Neste exercício mensal, pretendo, de alguma forma, ''casar'' a Matemática com a Poesia... vamos ver no que dá...

5.10.11

outonos vários


voos amortecidos
pepitas de ouro morrendo de amores
folhas multicolores
que se desprendem com beijos de vento
conquistadores
cobrindo caminhos de outonos vários

bancos envelhecidos
deixando apodrecer amarelos antigos
castanhos internos perdidos
inocentes
doentes
alheios
às crianças de olhos cheios
de vida, de brilho, de azuis diferentes
em bicicletas displicentes
que em circulação preguiçosa
me entretêm a alma mentirosa
disfarçadamente plantando  sorrisos
num jardim de gente
e numa tarde estendida

ao sol, ainda quente