30.1.13

poema inacabado, ou não (XXVI)

os teus olhos, quando estão
levam os meus
e às escuras
perco-me em todos os contornos teus

poema inacabado, ou não (XXV)

os teus olhos
quando não estão
acendem-me as veias
que despejam estrelas
no coração

poema inacabado, ou não (XXIV)

a solidão caía gelada
desenhando cada linha
do banco de jardim
que no verão, vi sorrir desalmadamente
das conversas despejadas
por namorados
de palavras ardentes
e suadas

hoje, ao passar
ouvi o tiritar de cada sua linha
que sobrevive na praça
perto da minha casa

poema inacabado, ou não (XXIII)


em Janeiro
a cidade enche-se de flores brancas
de perfumes frios
que obrigam narizes curiosos
a usar luvas.

em Janeiro
as flores duram somente
alguns graus centigrados.
depois morrem
em lágrimas que correm pelos passeios

queria golos a rodos

Queria a vossa matinal preguiça
clamando por justiça
por ser ainda tão cedo.
Mesmo que resmungando,
queria vossos passos ecoando
pela casa ainda fria.
Queria os restos do pequeno-almoço
espalhados pela sala.
Queria a Vossa fala
com restos de “refilisse”
por ser quase madrugada.
Queria o saco azul, na entrada
que por aqui está parada
porque ninguém me incomoda.
Queria conversas modernas
em linguagem “ipad”
que um velho diz que entende
abanando a cabeça.
Queria beijos de fugida
ou abraços de bom dia
queria um pavilhão gelado
e o orgulho pairado
em todo o meu corpo velho
que não joga, observa.
Queria golos a rodos
saltos, corridas, alegria
e o vosso sorriso estampado
que hoje aqui lembrado
me deixa fora da vida.

a mulher de papel


A mulher de papel
dobrava-se facilmente
cabendo perfeitamente
num pequeno envelope
dentro da carteira que ele trazia
junto ao coração.

A mulher de papel
tinha muitas letras
espalhadas pelo corpo
fragmentos de notícias
cortadas aleatoriamente
de modo a ter
cabeça, tronco e membros
e um chapéu lindo
com a previsão do tempo
e as temperaturas que farão amanhã

A mulher de papel
andava sempre admirada
com um O maiúsculo na boca
dois olhos minúsculos
desenhados com a mesma letra
e uns seios pequeninos
que eram pontos finais
em notícia de polícia.

A mulher de papel
era apaixonada, arrebatada, apalavrada
e feita de jornal.

POEMÁTICA: infinito


Peguei no velho caderno
que era quadriculado
e rumei ao infinito.

Levei régua e esquadro
uma borracha quadrada
um compasso afiado
para desenhar muitas luas
quando o céu se escurecesse
com tantas saudades tuas.

Levei dedos p’ra contar
a cabeça p’ra pensar
os óculos de aumentar
e uns chinelos de quarto
caso chegasse a encontrar
três quartos, e a somar, poder ter
uma unidade a morar
no meu coração de notas.

Perguntei pela verdade
em conjuntos universo.
Cansei-me da falsidade
dos operadores boleanos
e depois de alguns anos
perdidos a calcorrear
por cálculos em desespero
deixei-me escorregar
e dividi-me por zero.

o meu gato


O meu gato adorava as línguas
de rato, com leite morno, pela manhã
até ao dia
em que soube
que não eram línguas de rato
mas de gato
as que comia, com artimanha
sendo façanha
consegui-lo diariamente
antes de eu próprio chegar à cozinha.

Internado no hospício
desde a semana passada
o gato deixou de falar
com medo de engolir a língua.

Agora mia, mia, mia, mia
como um gato de verdade.

intranquilidade

Não sei onde guardar
as vontades que tenho de anoitecer
e talvez apanhar a lua
como se fosse corpo teu
aceso, no Mar da Tranquilidade
cheio de crateras a brilhar.
E assim, por entre a intranquilidade
que escureceu aqui o ar
pouso os olhos na janela
e vejo os teus dedos escrever
(no papel embaciado que fizeste
com o teu respirar),
AMO-TE"

apetecia-me noite

Apetecia-me noite
noite por dentro, por fora,
em todos os bocados do meu corpo.
Sentir a escuridão escorrer-me na pele
e os olhos abertos, como se fechados estivessem,
gotejando lágrimas de grude
como se tivessem encalhado na praia da morte.

Noite, apetecia-me noite, sempre
porque tu não me iluminas.

loucura


Palavras barulhentas
invadem-me os sentidos
não me deixando dormir.
Calem-se!
Pintem-se de silêncio…
Calem-se!
Saiam de mim
pela porta da demência
por onde ousaram entrar.
Voltem para a merda da realidade
e permitam à utopia fazer-me o leito
onde acredito que vivo.

Calem-se! Deixem-me endoidecer
devagar...

quatro metros quadrados


As noites têm quatro metros quadrados
cheias de dias que passam devagar.

Transbordam de natais passados
que se esgueiram pela frincha da porta
quase fechada para o sono não se esgueirar
ou, o mais certo, para o cão não entrar.

Quatro metros quadrados
enfeitados de olhos que me espiam,
paredes ásperas que arranham o ar
e os teus passos caminhando pela minha imaginação,
deixando marcas na neve que me cobre o corpo.

As noites têm quatro metros quadrados
e uma infinita área de saudades
que me sufocam.

Se estivesses, o meu quarto crescia
e o Natal não me fugia.

doze poemas

As doze últimas folhas
caíram sobre o último poeta
que abandonava o mundo
deixando a nudez da última árvore
distraindo a lua
numa última noite de dezembro escuro.
Só as doze ninfas sobreviveram
e despidas dançaram
sobre escombros dos seus últimos poemas
escritos sobre o pó do tempo que o abandonou.

Ilegíveis, consentiram ser pisados
até ao chegar da aurora.
Mártires de amor, subiram aos céus
e sentaram-se à direita do Pai
que se ausentara para assistir ao fim do mundo
da marquise construída para o efeito.