30.6.09

naufragar

foto: Sirius (http://www.olhares.com/)

não, eu já não consigo
acender estrelas
que mesmo sendo belas
só por si se apagam
quando as afagam
quando cuidam delas

não, eu já não consigo
ser pastor de almas
que mesmo quando calmas
são dentro agitadas
agem, alteradas
deixam vis pegadas

não, eu já não consigo
navegar no mar
não sei esperar
por marés ligeiras
ou por luas cheias
quero naufragar

no fundo de mim
(que é o meu lugar)
paro de brilhar
fico só comigo
porque não consigo
voltar a sonhar

27.6.09

a visita das palavras

foto: André Filipe Antunes (http://www.olhares.com/)

Ligo as palavras portuguesas,
fazem-me companhia
e com passes de magia
entorno-as devagar pelo espaço
onde o silêncio é o som
que me faz adormecer, em cada dia.
Não as pretendo perceber,
sinto-as , deixo-as entrar e preencher
a alma calada e vazia
que resolveu amuar-se, ficar completamente fria
e resistir sem simpatia
às palavras que chegam indefesas

Palavras diversas, sem contexto, sem sentido:
“térmitas, moscas, aranhas e formigas
pululam numa árvore esquisita…”
são hoje uma ilustre visita
que vem aconchegar a saudade
usando uma estranha agilidade.
São palavras portuguesas
que chegam virtualmente acesas
ao coração agradecido
batendo devagar, meio perdido
em corpo cansado, entristecido

ciúme (voo VIII)

(escultura de Maria Leal da Costa)

Voas altivo, importante
deixas cego quem te vê
vens de lugar bem distante
chegas sempre sem porquê.
Atordoas tudo e todos
trazes frenesi a rodos
que sustenta feio lume
e numa aterragem forçada
deixas marca bem vincada
de ave feita ciúme

24.6.09

o tocador de acordeão

foto: Nuno Guimarães

O som inunda ruas vazias
vertendo valsas em noites frias
por cantos tristes e distraídos.
Escorrem leves, passos, ruídos
dalguns passantes comprometidos
que depositam os seus sorrisos
nos degraus velhos e bem polidos
onde descansam as melodias

Sabendo de cor alinhamentos
solto no ar meus pensamentos
que dançam ágeis uma canção.
Sentindo a noite tão envolvente
fico por lá eternamente
e as batidas do coração
fazem dueto de emoção
com tocador de acordeão

23.6.09

eu vi a lua

foto: Sérgio Boeira (www.olhares.com)

- eu vi a lua
dançando nua
num céu de estrelas
posto a sonhar
- eu vi a lua
que já foi tua
deitar-se ao mar
e mergulhar
- eu vi a lua
saindo à rua
vaidosa e linda
a caminhar
- eu vi a lua
como gazua
lesto corri
para a abraçar

20.6.09

lágrimas

foto: Carla Salgueiro (www.olhares.com)
As lágrimas invadem lentamente
socalcos do teu corpo atormentado
criando rios mornos de corrente
que lavam as feridas e em torrente
destroem os resquícios do passado.
E neste temporal anunciado
conduzem águas novas de nascente
temperam o sabor adocicado
da pele que teima em ser o leito
do amor que navega adivinhado
e pára suavemente no teu peito.

18.6.09

preso

foto: José Santa (www.olhares.com)

Estou preso, encerrado em liberdade
e regulado por ausência de verdade.
Estou preso, pelas grades da inveja
construídas com mestria
e sem que ninguém as veja,
ferem com grande jeito
encostando a alma fria
à parede do meu peito

Estou preso, com sorriso jovial
forçado, simples, banal
que amanho ao espelho
(olho-me, sinto-me velho…).
Estou preso, contando os dias,
para a alforria final.
Insano e paciente, falo comigo,
articulo sons, não ouço o que digo
contemplo reflectida,
uma imagem distorcida…
Estou preso, louco, cansado,
neste cárcere atraiçoado
nesta cadeia de vida.

16.6.09

restos de pessoas


Aqui as madrugadas são de luz
com restos de pessoas pelas ruas
em passos arrastados por rotinas,
percorrem a cidade, almas nuas.
De mágoas e vivências contrafeitas
consomem goles de álcool nas esquinas
desfazem esperanças liquefeitas
em tragos de bebidas libertinas.

Errantes caminham em passeios
errados nos sentidos intuídos
sem pressas colidem com anseios
que turvam pensamentos contundidos.

Num banco de jardim, já adormecem
nos braços das manhãs não desejadas
transpiram os vapores que se suspendem
nas gargantas pela noite destiladas.
Esperam pela luz da madrugada
por um atempado despertar
que os carrega pegada após pegada
ao costumeiro e triste vaguear.

11.6.09

Taprobana


Encontro um pedaço de Pátria
flutuando na alma
longe, paira com orgulho
na janela forasteira
que range e faz barulho
quando a abro, dia dez
numa manhã soalheira.

Invado a cidade quente
com fragrância lusitana
e embarco toda esta gente
numa viagem diferente
à volta da Taprobana.

Adoçados por pastel
que encomendei em Belém
Gama, Camões e Pessoa
navegam no meu batel
que vem de Macau , via Goa.
O rio não fica indiferente
sabe que estão por um dia.
Num suave ondular
resolve fazer-se mar,
e mesmo a sua água fria
que passa a saber a sal
corre com outra alegria
murmura por Portugal.

9.6.09

sem nome

hoje quero ficar só
talvez p’ra sempre
com os meus botões
sem confusões
hoje não acredito mais
que haja número par
diferente
que seja capaz de amar
serenamente
que seja nas palavras
prudente
que não questione
eternamente
o amor que tenho para dar
de um modo talvez
diferente

6.6.09

lapso de tempo

foto: Zélia Paulo Silva (www.olhares.com)

Tenho um lapso de tempo
reservado no meu bolso.
Sem uma razão aparente,
mantenho-o assim guardado,
no seu estado dormente,
num velho relógio parado
que de corda bem partida,
repousa solenemente
suspendendo o precipício
que nos ameaça a vida.

Usado como uma bomba,
de mortífera paciência
liquida os seres alados
que enfrentando a ciência
vivem na consciência
e surgem de muitos lados.

Assim, de arrojo, usado,
vigora a hecatombe
dos fantasmas do passado.
Jazem já em densa calma,
em sentimento esfumado
pelas ruas da cidade
que vive dentro da alma.

4.6.09

canção de ondular

foto: Joana Martins (www.olhares.com)

meu mar da noite, sossega agora
e adormece, sob o luar
daqui a pouco, na tua pele,
vais ter o sol do meu beijar

e se sentires, ondu(lamento),
quase por perto
quase a chegar
ordena à noite
um negro lento
e um sereno, doce ondular…

3.6.09

andorinha-do-mar (voo VII)

(escultura de Maria Leal da Costa)

Seu voo era ondulado,
deixava rasto salgado
perfumando o seu voar.
As penas de algas pardas
encrostavam-lhe as asas
faziam-na bem mergulhar.
Era a primavera minha
que a alma sempre tinha
quando estava a invernar.

Um dia, esta andorinha
sem asas , deixou de amar
dissolveu-se numa linha
de horizonte fundido
no sal do seu gotejar.
De coração decidido
e vontade de mudar,
abandonou o seu mundo
tornou-se dona do mar.