30.9.10

derradeiro grito

vamo-nos desiludindo pouco a pouco
vamos perdendo a luz, o corpo e a alma
vamos rastejando já sem calma
na vida transformada em cilada
vamos comendo lama, à sobremesa
e bebendo a simpatia inquinada
dos seres que nos sobrevoam pela calada

vamos dormindo em cama feita
por inimigos com sorrisos falseados
vamos acordando atordoados
com mentiras que nos trazem madrugadas
vamos engolindo elefantes
com dentes que trespassam confiantes
as entranhas dos corpos já doentes
que jazem em esperanças enganadas

vamos nadando em rio negro
com margens apinhadas de chacais
deixando-nos arrastar pelos caudais
até ao mar profundo e infinito

vamo-nos afundando devagar
sem força para poder soltar
um único e derradeiro grito

29.9.10

linha branca

uma linha contínua, branca, sempre molhada
segue comigo em viagem
vem acorrentada à janela
por onde corre (também ela)
a minha auto-estrada

avança célere, importante e ousada
fazendo-me desagradável companhia
que me deixa em profunda agonia
e a mente em velocidade alucinada.
são imagens recusadas, mas que passam
e trepassam lancinantes alma minha
trazidas sem licença pela linha
contínua, branca, sempre molhada
por chuva de Outono, acinzentada
que aqui vai caindo delicada

na linha, um desenho atormentado
das perdas que existem nesta vida
as que náo conseguiram despedia
e habitam teimosamente o passado

26.9.10

às vezes é assim

às vezes é assim
as palavras escondem-se
em complicados becos de memória
e permanecem escuras como a noite
sem as podermos alcançar
às vezes, lá as apanho
trago-as à força
amarro-as, umas atrás das outras
em filas de semânticos degredos
em busca do poema entendível
às vezes, as palavras
condenam o poeta à forca
chegam ao papel
e em passe de magia
branqueiam-se numa alvura angelical
às vezes, o poema
é uma simples folha branca de papel



23.9.10

outonos e primaveras

foto: Pedro Sacadura (www.olhares.com)

recolho outonos p’ra ti
em pedaços, em tristezas, em amarelos pequenos
em linhas de sol mortiço
pintadas em céu mestiço
de azul e de cinzento
lamento
teu gosto assim
eu cá quero p'ra mim
primaveras coloridas, divertidas, proibidas
cheias de sexo, de amor
cheias de cheiros, inteiros
verdadeiros
em canteiros
que eu planto pr’ra ti
aparece por aqui
dou-te bocados de mim
dou-te arrepios de pele
as rugas da minha face
cabelos que envelhecem
sorrisos que se enternecem
os beijos que te aquecem
e meus dedos que se esquecem
como poder ter os teus

16.9.10

amor, eu volto já

amor, eu volto já
encerro para descanso
da alma que envelhece
e refugio os meus dedos
nos bolsos do meu passado.
amor, vou de viagem
procuro uma outra margem
para transbordar meu corpo
para o deixar como morto
com tempo para apagar
as rugas que o tempo deixa.
misturo-me com o vento
que sopra frio de norte
e rio da minha sorte
em poder assim voar.
amor, eu volto já
deixo mensagem na porta
e as saudades varridas
debaixo de um poema
que escrevi para ti
para quando chegares cá.
eu acho que volto já
a cama tem roupa fresca
e cinzas de incenso novo
espalhadas pela brisa
que se enrolou nos lençois
adormecendo depois.
amor, quando chegares
vais encontrar rastos meus
podes juntar-lhes os teus
e deixá-los em silêncio
abraçados no sofá
porque, amor
eu volto já...


12.9.10

pedaços de amor

saí por aí
apanhando os pedaços de amor
desperdiçado pelas gentes.
meti-os em caixas de cartão
grandes como o coração
e trouxe-os nos bolsos da minha alma
para reciclagem.
depois, em viagem
pela terra onde todos dizem não
enfeitei com eles as esquinas
fiz cartazes e colei-os nas ruínas
dos homens que são de papelão.
num jardim que encontrei
à beira do teu corpo
deixei para ti uma flor
feita com o mais belo pedaço de amor
que tu perdeste
distraída
nas vírgulas da vida
nas ausências de gestos
mergulhados num imenso torpor

7.9.10

relampejar


os relâmpagos desta noite
trazem-me o desenho do teu corpo
bordado a ponto de luz
com costuras perfeitas nos teus dedos

vejo os teus olhos piscando
como as estrelas que se foram apagando
antes da tormenta chegar

o relampejar
traz o teu cheiro diluído pela chuva
abro, em antecipação, a janela
encho a alma de flores
e como se fosse primavera
espero que as venhas apanhar...

6.9.10

gerúndios de vida

4.9.10

desaprendi a voar (voo XX)


guardo as asas que me deste
desaprendi a voar
cativo tu me puseste
preso nas noites sem lua
não vendo os teus olhos brilhar

passeando no abismo
preso nas ausências de mar
a vida está por um fio
a alma corre sem rio
pronta para se afogar
guardo as asas que me deste
pouso o meu corpo na margem
não sigo mais em viagem
desaprendi a voar



nota: poema escrito para projecto conjunto com a escultora Maria Leal da Costa, que em breve será apresentado em Portugal e Lituânia.

3.9.10

preces de voar (voo XIX)

foto de Nuno Manuel P. Martins (www.olhares.com)
sabes, hoje o céu acinzentou-se
e pingou tinta de solidão sobre mim
as asas que tu me deste, entristeceram
fecharam-se, e autistas, deixaram de ouvir
as minhas preces de voar

fiquei-me à janela, sem poder saltar
sem poder sentir o ar
em velocidade louca sobre a face
deixei-me ficar, moribundo
deixando à minha volta, voar o mundo
que por um segundo
trouxe-me até aqui o teu olhar



nota: poema escrito para projecto conjunto com a escultora Maria Leal da Costa, que em breve será apresentado em Portugal e Lituânia.

2.9.10

gaivota


foto: Filipe Silva (www.olhares.com)
espero sempre à janela
que tu chegues a voar
vens sempre na primavera
com as asas muito cheias
de gotas salgadas pelo mar
trazes sorrisos de sol
trazes cheiros das distâncias
p’ra matar minhas saudades
inundá-las de fragrâncias
roubadas da terra ao lavrar
trazes cores nas tuas penas
e quantidades pequenas
de desejos de voltar

espero por ti à janela
espraiando o meu olhar
no azul do oceano
que sou capaz de inventar
espero que chegues gaivota
com vontade de ficar
e pouses nesta ilhota
que encontrei para morar



nota: poema escrito para projecto conjunto com a escultora Maria Leal da Costa, que em breve será apresentado em Portugal e Lituânia.

1.9.10

destino - Porto