31.1.10

um cigarro fumado devagar


foto: Sandro Ferreira (www.olhares.com)

observo um maço de cigarros
esquecido em parapeito de janela
vício de queimar a solidão
aquecendo lentamente o coração
que espera ansioso a primavera

um cigarro é a minha companhia
com fumo enchendo a boca de saudade
tempo de acordar a apatia
há muito perdida na analgia
que fez do meu corpo sua cidade

nostalgia fumada devagar
ao correr das imagens a ficar
abraçadas em rastos de cinzas, poucas
ecos de vozes longes e roucas
que gritam arrastadas como loucas
pedindo teu corpo p'ra navegar

imagino-me a fumar este cigarro
de olhos bem fechados, frente ao mar
que desta janela não enxergo
mas dentro de mim, agitado albergo
até o fumo, devagar, o libertar

29.1.10

vi-as no escuro a cintilar


a lua hoje não apareceu, ocupou-se em tarefas de céu
limpezas várias, polimentos, que deixaram as estrelas a brilhar
sozinhas, convencidas, desejosas de caírem de amores cadentes
em viagens de abraçar a terra e de a beijar
a lua não apareceu, e, mais tarde, tentou alcançar o sol
perdeu-o por segundos de amanhecer
chorou lágrimas de saudades que apagaram em sal, o levantar
vermelho, sangue de mar, o sol, no seu despertar
esperei, mas ela não apareceu, a lua
ocupou-se de tarefas de céu
limpo, vento de noroeste e as estrelas?
vi-as no escuro a cintilar

28.1.10

três beijos


guardo na caixa três beijos, que tenho para te dar
na tampa fiz-lhe três furos, por onde os deixo espreitar
nos dias que ainda faltam, para cruzarem o mar
os beijos, tão inquietos, só pensam em navegar.
guardo na caixa três beijos, que não param de crescer
são beijos lindos e doces que vais num trago beber
são os desejos que eu tenho, antes de adormecer
são os sonhos que eu escondo, quando está a amanhecer.
a caixa só tem três beijos e um resto do sentir
que me enche as duas mãos, quando quero enfim partir
a caixa só tem três beijos, que um dia hão-de fugir
voam, pousam nos teus lábios, e provam o teu sorrir

(versão russa)

25.1.10

o teu perfume ainda dorme

desenho de Rachele Hunter (http://www.rachelesworks.com/)


nesta almofada a que me agarro
o teu perfume ainda dorme
o sono que não sendo eterno
deixa sem sono o pensamento
e quase acorda o meu inferno

nesta almofada a que me agarro
como alma que não quer partir
flutuo ténue, em sonho louco
mergulho em quadro surreal
contemplo tela, que é imortal:
teu corpo nu, sempre a sorrir
e as tuas mãos, a seduzir

o teu perfume ainda dorme
e eu suspendo o respirar
morro agarrado à utopia
para não a despertar

22.1.10

os silêncios...

foto: Ana Rita Peixoto Pereira (www.olhares.com)

os silêncios sobrepõem-se em camadas alfabéticas
arrumados em gavetas vazias de promessas
os silêncios agonizam lentamente
sistemáticos, metódicos, compostos
numa rigidez imposta por mordaças de ilusão.
sonhos comprados numa feira falida de vaidades
os silêncios são…
os silêncios eram…
os silêncios foram…
os silêncios, perdem-se em tempos verbais
clamando ordem ao tempo que lhes resta.
morrem devagar, sincopados, soletrados por boca seca
compassados em ritmos de sílabas cantadas em desespero
os silêncios são…
os silêncios eram…
os silêncios foram…
ausências tuas numa vida que termina
banalidades em monólogos de amor
corpos calados em orgasmos não sentidos
demências em luares que não chegaram
escolhos nos rios percorridos



os silêncios foram…

nota: a experiência continua, num processo de contínua aprendizagem desta escrita...

(versão polaca

21.1.10

ruínas fumegantes


ali não há heróis, só desespero
semeado por ruínas fumegantes
que regadas pelos choros dos viventes
libertam vozes soltas, impotentes
e dores lancinantes sem um norte.
os cheiros ofegantes e de morte
inundam a cidade em farrapos
vagueiam corpos tristes em pedaços
e os soldados estão perdidos em espaços
esmagados por destroços dos sentidos.
ali os heróis estão todos mortos
caíram nas fendas do destino
perderam os seus sonhos de repente
deixaram os sorrisos para sempre
adormecendo nos braços do divino

19.1.10

quarto gelado

o quarto fechado já não espera por ti
as paredes ruíram em pedaços brancos de gelo
por ausência de calor dos beijos que me davas
o frio que fizeste espalhou-se pelo chão
empenando madeiras apodrecidas
que rangiam chorando a ausência dos teus passos
o quarto fechado já não espera por ti
a porta, simplesmente pendurada na ombreira dum inverno antecipado
perdeu função engolindo a chave
e morreu fechada na forca que fizeste

o quarto gelado já não espera por ti…


15.1.10

abraço imaginado

(imagem: quadro de Picasso / abrazo)

um abraço imaginado pousou-me hoje no peito
e trouxe com ele o teu jeito
de chegar
de sonhar
de gostar
com um gosto tão perfeito
cegou-me no seu apertar
incessante
ofegante
de tonalidade brilhante
lembrando um vento solar.
por ofuscar-me o olhar
com seu brilho penetrante
as lágrimas que escorreram
por sentir teu abraçar
eram como estrelas d’água
com o sal a cintilar

um abraço imaginado, deixou-me hoje sozinho
com as mãos tocando o nada
o corpo sem uma morada
e a alma em desalinho

8.1.10

neda


hoje sonhei que não morreste
que por justiça do vento
em nevoeiro cerrado
serenamente apareceste
sem vingança, sem desgosto, sem lamento
vi teu sorriso rasgado
vi teu corpo apaixonado
ondulando a um só tempo
nos gritos da multidão.
hoje, olhando com atenção
vi teu véu esvoaçando
libertando ternamente
o bater tão persistente
do teu terno coração.
hoje, o teu peito não sangrava
a tua alma sonhava
aberta, em liberdade
na palma de uma só mão.
hoje sonhei que não partiste
ouvi a tua voz envolvente
cantando estoicamente
com verdade e com paixão
vi teus lábios encarnados
eternamente acordados
soprando uma canção

1.1.10

devaneio

(imagem: devaneio de Henri Matisse)

sabes, encontrei agora restos de sorrisos
que sobraram
encontrei laços descoloridos
órfãos de função
vi papéis de embrulho rasgados, perdidos
arrastados pelo vento
lambendo o chão.
o cheiro, agora bolorento
pousou numa toalha amarrotada
invadiu uma rabanada
e coloriu um pedaço de creme
queimado
pelo relógio que amargurado
silenciou ontem a décima segunda badalada.
o tempo dos abraços, acabou
o beijo que me deste, azedou
o livro repetido repousa em espera
ladeando o perfume com um cheiro sucedâneo, a primavera.
sabes, encontrei agora restos da felicidade
que perdeste, jogando cartas de saudade
encontrei uma lágrima brilhante
enfeitando o caminho onde vagueio
iluminando o meu devaneio
com uma luz densa e sufocante