29.3.12

os restos que restam

procuro nos restos que restam
um simples sinal de ti
procuro passos que soem
no eco dos medos que tenho
procuro o perfume perdido
evaporado e roubado
no abraço acontecido
procuro um sorriso tatuado
a escorrer pelo espelho
procuro um gesto que voe
nos quatro cantos da casa
e as palavras que dizes
quando estás apaixonada
procuro o ar que me falta
estrelas, a lua e o céu
que me deixou aqui órfão
que me roubou tua mão
procuro a paz e o mel
que me trazes à tardinha
para adoçar os meus lábios
secos de tanto esperar
procuro também o mar
que não existe nos livros
da cidade onde vivo
procuro o sal das marés
que me faça chorar contigo
procuro o nada e o tudo
o meu universo sumido
na areia feita tempo
a escoar-me nos dedos

depois, só por uns segundos…

procuro fechar os olhos
e adormecer no sonho
que me leve do escuro
mas tudo me traz o começo
deste dia indefinido
e o poema repete
aquilo que tenho cá dentro
aquilo que tenho comigo…

procuro nos restos que restam
um simples sinal de ti
procuro passos que soem
no eco dos medos que tenho
procuro o perfume perdido
evaporado e roubado
no abraço acontecido



...
...

depois, só por uns segundos…

procuro fechar os olhos
e adormecer no sonho
que me leve do escuro
mas tudo me traz o começo
deste dia indefinido
e o poema repete
aquilo que tenho cá dentro
aquilo que tenho comigo…

o relógio da cozinha


inquieto-me com a chuva de segundos
que cai suavemente do relógio da cozinha
as gotas “tic-tacteiam” no meu corpo
como alfinetes que testam os reflexos da alma
verificando a existência de saudades
ela, a alma, levanta-se a cada estimulo provocado
como se o sofrimento não existisse
como se a nostalgia se instalasse
em cada minuto escorrido na pele
inquieto-me com a chuva dos teus olhos
molhando os meus
e conto os segundos do relógio da cozinha
crescem, crescem, crescem
como monstros que não me deixam encontrar-te

19.3.12

a tua pele despida

gelos moribundos
contorcem-se nas bermas do jardim
num processo artístico de anúncio de primavera
sem ruídos, cinzéis solares
expressam-se silenciosamente
nos contornos das pedras frias
ouvem-se gemidos gelados
nos derretimentos das figuras fabulosas
que voam da imaginação
e morrem-se devagar, sangrando águas
bebericadas pelos pombos, que já chegaram à cidade

num banco de jardim
no anúncio da primavera
o sol esculpe-me vagarosamente a alma
aquecendo-me os olhos
e deixando-me com um enorme desejo
da tua pele despida

18.3.12

o professor matemática

o professor de matemática
tinha sacos de algarismos em casa
que juntava desde pequeno
roubando-os das portas da vizinhança
e dos preços da frutaria da esquina
cuja menina
haveria de ser um dia
a sua eterna namorada
tinha-os das matrículas de automóveis
tinha-os dos prazos de validade
dos xaropes que tomava
tinha-os, surripiados, dos Km das estradas
estabelecendo a teoria das distâncias acabadas
o professor de matemática
vestia-se de algarismos coloridos
e tomava banhos em zeros subtraídos
que borbulhavam como sais
na sua banheira encarnada
tinha algarismos talhados
cortados
em fugas precipitadas
outros, já acamados
com idade avançada
lutavam por não morrer
nas estatísticas falhadas
o professor era estranho
no seu jaguar castanho
com matrícula apagada
usava gravata amarela
e um grande três na lapela
esse três, como dizia
a conta que Deus lhe fez
ao ensinar tabuada
o professor de matemática
era ele próprio, um número quase infinito
de histórias
de loucuras
de bravuras
de ternuras
de aulas cheias de aventuras
o professor existiu!
durante a construção do poema

NOTA: Desafio lançado pelo Clube de Matemática ao qual respondi com um gosto muito especial atendendo à minha formação mais virada para as ciências do que para as letras. Neste exercício mensal, pretendo, de alguma forma, ''casar'' a Matemática com a Poesia... vamos ver no que dá...

17.3.12

debaixo da língua


debaixo da língua
tenho tantas e tantas histórias
que escondo sem engolir
navegam em salivas agitadas
doces
quando são de embalar
e dançam suavemente
adormecendo quando liberto
o meu falar

algumas das histórias são amargas
pedaços que arranham
e sangram
o sabor que corre na garganta
num sofrimento
que explode devagar
fragmentando a dor
destruindo os sonhos
tristezas aos pedaços
dentro do meu gritar

debaixo da língua
tenho tantas e tantas histórias
para contar

9.3.12

se tu viesses ver-me




se tu viesses ver-me à noitinha
eu teria ainda a pele arrepiada
e o coração em forte debandada
como os cavalos em trote na corrida
terias visto as saudades que eu tenho
e as linhas do teu corpo que desenho
no vidro embaciado do meu quarto
ahhh se hoje cá viesses à noitinha
possivelmente me encontravas moribundo
por falta dos teus beijos e abraços
e uma lágrima minha descobrias
salgando o caos da mente em que me encontro
espero por ti ainda, estou na linha
traçada devagar no chão que já mal piso
de um lado tenho a morte que me tenta
do outro estás só tu, estás sorrindo… 

(inspirado no poema ''Se tu viesses ver-me'' de Florbela Espanca)

7.3.12

saudade tem...


a saudade tem três sílabas
e tem suspiros… uns quantos
tem seres saltitando na mente
e usa uns suspensórios
que nos amarram à distância
tem sapatos que nos doem
tem suores e calafrios
tem saltimbancos que choram
tem sapos que não se engolem
tem sirenes que não tocam
tem santos que não acodem
tem saltos mortais sem rede
tem sereias que nos vencem
em jogos de sorte e azar
tem solfejo de um anjo
tem um sol à meia-noite
tem sucata não ferrosa
que atrai a solidão
tem sobrancelhas carregadas
das vontades sublimadas
que enchem o coração
tem soltos cabelos ao vento
que se emaranham no tempo
tem sangue frio ou quente
dependendo do inverno
tem sandálias no verão
para refrescar ideias
tem soro que pinga na alma
na quantidade que falta
tem um sítio onde mora
tem um solene recato
tem sal doce quanto baste
tem suplícios vagarosos
sinais de transito fechados
e caroços congelados
tem silvas que arranham no escuro
tem sombras e silhuetas
tem serpentes venenosas
que nos matam os silêncios
tem sumo de três laranjas
e vinho que embriaga
tem salas todas fechadas
onde só entra quem sabe
tem segredos abraçados
com medos de um dia morrer
tem solavancos de estado
tem souvenirs do passado
são surreais, a arder
tem serpentinas cinzentas
dos carnavais adiados
tem serras de estrela cansadas
de nunca tocar firmamentos
tem saladas de sentidos
temperadas por histórias
e soluções adiadas
das doenças complicadas

a saudade tem três sílabas
suspiros, contei uns quantos
tem estrelas de prazer
e tem sorrisos de dia...

e sem quase ninguém saber
tem suspiros de mulher

3.3.12

hoje fecho a conta

hoje fecho a conta
saio sem pedir desconto
não volto a fazer despesa
vou-me pela calada da noite
vou-me pelo silêncio da lua
deixo a alma praticamente nua
em banhos de espuma branca
para da morte se rir
retiro-me numa suspensão futura
e deito-me esperando que tudo
mas tudo aconteça
tal qual o sonho
que não me deixou dormir
fecho a pele
encerro o tempo nos olhos
para ele não fugir
liberto o fumo, o nevoeiro
fico inteiro
e escondido, assim vivo
porque te tenho
e nunca me deixarei morrer

2.3.12

someday...


someday, a neve será de mel aos pedaços
que apanharás com a língua
como se fosses Alice
no país ‘’wonderland’’
someday, no mar haverá ondas
iguais às do teu cabelo
e os meus dedos, quais barcos
encontrarão marés cheias
que trarás entre as ameias
dos oceanos que fazes
someday, as flores da primavera
despontarão a destempo
nas palavras de mil cores
que dizes em forma de doces
e atiras, escondidas
nos versos que tu escreves
someday, as portas serão janelas
transparentes, muito belas
que tu vais atravessar
porque tens brilho do sol
no brilho do teu olhar
someday, o monstro da floresta
que à noite te apoquenta
quando os teus pés estão descalços
pela manhã chegará
contigo chá tomará
e por magia anciã
vai levar todo o teu medo
vai deixar-te um segredo
que se revelará nos teus sonhos

qualquer dia, se puder
quero ser um pouco tu
para conhecer as histórias
que tens dentro de ti
como se a tua alma fosse
fosse um enorme baú